Jogos Vorazes é um paradoxo na cultura pop contemporânea

Atualizado em 23 de novembro de 2014 às 13:34

Publicado no cineweb.
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Por Alysson Oliveira

Nesta primeira parte do capítulo final da saga, Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) está no Distrito 13, após literalmente destruir os jogos para sempre. Sob a liderança da Presidente Coin (Julianne Moore) e o aconselhamento de seus amigos, Katniss mais uma vez abre suas asas para salvar Peeta (Josh Hutcherson) e uma nação movida por sua coragem. O livro no qual o filme é baseado é o terceiro da trilogia escrita por Suzanne Collins, com mais de 65 milhões de cópias vendidas apenas nos Estados Unidos. Estreia no Brasil: 19-11.

Ao chegar à primeira parte de seu último segmento, Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1, a franquia “Jogos Vorazes” (mais os filmes do que os livros) é um paradoxo na cultura pop contemporânea. É, claro, fruto de Hollywood, da indústria do entretenimento e produzido com o objetivo primordial de gerar lucros. Por outro lado, é também o retrato de uma sociedade opressiva, na qual a riqueza e o poder estão sob o controle de poucos, que exploram e subjugam milhares que, por sua vez, vão finalmente vão rebelar-se numa revolução socialista visando redistribuição desse patrimônio.

Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) é a inocente útil para tal revolução. Bem, nem tão inocente, mas bastante útil com seu poder de mobilização das massas desde quando assumiu o lugar de sua irmã Prim (Willow Shields), escolhida para os Jogos Vorazes (no primeiro filme, de 2012), nos quais jovens dos vários distritos de um lugar chamado Panem (que é o que sobrou dos EUA) competiam num reality show de selvageria e morte. Ao tomar o lugar da caçula e subverter as regras da competição, a protagonista mostra que existem fissuras no sistema – essas se materializam finalmente na conclusão do segundo filme da série, lançado no ano passado.

Agora que Jogos Vorazes entra em sua reta final – o terceiro livro de Suzanne Collins é dividido em duas partes, assim, o próximo e último filme será lançado daqui a um ano – não há mais tempo para os jogos propriamente ditos, na distopia pós-apocalíptica desse futuro obscuro até então orquestrada pelo presidente Snow (Donald Sutherland). A suposta destruição do Distrito 13 visou servir de exemplo a todos os rebeldes. Era o que se supunha, pois quando este é encontrado como foco de resistência, oculto no subsolo daquilo que o lugar foi um dia, ressurge a esperança. E Katniss é a heroína certa para mobilizar os outros 12 distritos a continuar a rebelião.

Como já ficou claro nos outros filmes, Katniss é uma protagonista feminina peculiar. Encontrar o grande amor de sua vida, casar e ter filhos estão longe de ser seu objetivo de vida – embora tenha dois pretendentes, o valente e prestativo Gale (Liam Hemsworth), seu amigo de infância; e Peeta (Josh Hutcherson), garoto que conheceu quando participou pela primeira vez dos Jogos Vorazes e por quem nutre sentimentos dúbios de ternura e gratidão, já que acredita que lhe deve sua vida. Não, coisas de amor não têm vez para a garota, para quem sobreviver num mundo inóspito é sua meta primordial. Só por essa atitude numa sociedade patriarcal, Katniss já se destaca.

Se a garota é a cara da revolução – liderando os rebeldes e despertando o sentimento de rebeldia em todos os distritos –, a mente por trás desta é a Presidente do Distrito 13, Alma Coin (Julianne Moore), cujos longos cabelos grisalhos parecem guardar mais do que anos de sabedoria. Ao lado de Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman), que também já foi um dos organizadores dos Jogos na Capital, ela trama a derrocada e derrubada da elite. Este filme, o 3.1, apresenta, então, a construção da transformação, que deverá eclodir no segmento final.

Agora, o que realmente importa: o quanto de nosso presente “Jogos Vorazes” é capaz de perceber? Na verdade, muito, e de formas variadas. Seu cenário distópico serve a interesses de ambos os lados do espectro político – e disso surge o apelo quase universal dos filmes e dos livros: eles podem agradar a qualquer ideologia. Eles podem ser um retrato do mundo do capital financeiro – cada competidor é um investimento precioso de seu distrito – como também do mercado do trabalho – cada competidor luta por uma vaga numa sociedade em crise financeira eterna.

Se a ideia da transformação, da revolução, é plantada desde o primeiro filme, e alimentada em cada um deles, é preciso também lembrar que esta é uma série produzida por Hollywood, uma das indústrias mais lucrativas dos EUA – ao lado da bélica, outra que também está no centro do filme. Afinal, os Jogos Vorazes são todas as guerras em que o país se envolveu e ainda se envolve: é preciso dar alguma ocupação a milhares de jovens que não encontram emprego na pátria-mãe. Voltando a Hollywood: cinema é indústria e precisa gerar lucro, não instigar revoluções (ao menos não os grandes blockbusters). E, ao culpar a televisão (os Jogos Vorazes são televisionados), o cinema transfere a culpa da alienação para outro meio – quando ele mesmo é tão ou mais culpado por isso. Sem contar que transformar a trilogia de livros em quatro filmes é mais uma evidência do quanto este tipo de cinema é focado no business.

Enfim, como algo feito para gerar lucros e mais lucros pode ser uma crítica à alienação ou à concentração de riquezas? É nessa contenção, nessa incapacidade de transpor os seus limites, de pensar além do que lhe é dado que reside o grande paradoxo da série. E também a sua beleza.