No julgamento de Lula, a imparcialidade já tomou lado. Por Gustavo Freire Barbosa

Atualizado em 14 de dezembro de 2017 às 7:52
Moro no TRF 4

Publicado no Justificando

POR GUSTAVO FREIRE BARBOSA, advogado

“Obrigado, meu caro Mateus! Pode contar com a imparcialidade da justiça a seu favor!”. O trecho, retirado da obra A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna, pode gerar nos mais ortodoxos das chamadas “ciências jurídicas” uma reação intestina contra a ideia de que a imparcialidade tem lado. A contradição, todavia, é apenas aparente, e corresponde a um dos muitos dogmas ginasiais que sustentam o castelo de cartas teórico do que se convencionou a chamar de “direito”, “justiça” e outros epítetos ocos dessa natureza.

Em lição recente, o professor, advogado e filósofo Sílvio Almeida ensina que magistrados – a representação olímpica dessa imparcialidade – podem até ser independentes em relação a governos e partidos. Jamais, porém, serão independentes em relação à sua condição de classe e aos movimentos estruturais do modo de produção capitalista. Ninguém na hora de decidir se despe das condições materiais, financeiras, culturais e afetivas nas quais se forjou sua personalidade e se definiu o lado da cerca em que se encontra.

Almeida observa que, não por menos, as decisões no âmbito dos tribunais se dão via de regra por meio de órgãos colegiados, neutralizando eventuais voluntarismos de membros desgarrados que destoem da visão hegemônica. Para se ter uma ideia, basta ver o julgamento do processo disciplinar contra o juiz Sérgio Moro pela instância superior.

Almeida também chama a atenção para o papel histórico do Poder Judiciário na participação e legitimação de golpes a exemplo do ocorrido em 1964, onde se manteve coeso e alinhado aos propósitos declarados e não-declarados dos militares e das forças que patrocinaram a deposição de João Goulart.

Da mesma forma que ministros como Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva resistiram e foram alvo de retaliação. Em 2017, temos o notório exemplo dos Quatro de Copacabana, investigados pelo Conselho Nacional de Justiça não por terem manifestado suas opiniões políticas, mas por terem se expressado fora da decrepitude feudal e nobiliárquica da maioria da categoria a que integram.

Em uma sociedade dividida estruturalmente em classes sociais e com uma brutal herança escravocrata, a imparcialidade diante de conflitos que surgem nessa esteira é sinônimo de tomar lado – contrário inclusive ao da Constituição Federal, que elenca o combate à desigualdade e à discriminação como fundamento da república.

Em um momento no qual praticamente todo o preconceito de classe se condensa em um partido que, longe de ter tocado nos interesses predatórios do andar de cima, conseguiu promover consideráveis mudanças no fosso da desigualdade, é natural que a magistratura, derrubando outra infantil profissão de fé do liberalismo, mande às favas o transparente manto do republicanismo para expressar sem qualquer constrangimento sua incontida chancela ao fracasso da ordem constitucional da qual são pretensos fiadores.

Nesse contexto, se há alguém que não tem razões para reclamar da morosidade da justiça é o ex-presidente Lula. O Tribunal Federal Regional da 4ª Região acaba de, em tempo recorde, agendar seu julgamento no processo do triplex do Guarujá para o dia 24 de janeiro.

Goste-se ou não de Lula, o ex-presidente hoje representa a maior liderança política do País capaz de aglutinar a sociedade, suas forças e representações políticas, contra a debulha irresponsável e criminosa pela qual o País vem passando.

Eles, os desembargadores, e demais que compartilham da mesma visão de mundo sabem perfeitamente disso. Sabem, como bem observou Gilberto Maringoni, que o ex-presidente possui uma base social formidável capaz de dar sustância a uma resistência sólida contra as medidas que vêm implodindo todos os propósitos civilizatórios da Constituição de 1988 em favor da aplicação de um projeto obsceno que objetiva levar abaixo o tímido Estado de Bem-Estar Social que pudemos edificar em quase três décadas.

O açodado julgamento de Lula e toda a instrumentalização do Poder Judiciário nesse contexto de golpe, reformas e bênçãos jurisprudenciais a sucessivas quebras da própria legalidade burguesa vem confirmando que a normatividade não pode ser pensada por si mesma, uma vez que nasce de uma dimensão estrutural cujo perfil básico é dado pelo modo de produção dominante.

É nessa perspectiva que o senso comum dos juristas é contaminado pela ideologia que torna oculta a realidade contraditória dos conflitos sociais, de modo que as lentes jurídicas passam a servir muito mais para turvar os fatos do que para torná-los mais nítidos. É sintomático, como observado por Almeida, terem sido os poetas, e não os juristas, que se insurgiram contra a escravidão.

O ministro José Roberto Barroso costuma afirmar que o papel contramajoritário é uma das características do Poder Judiciário. No entanto, uma ligeira olhadela é suficiente para mostrar que não existe poder contramajoritário quando o embate se dá em um terreno onde uma das partes já é antecipadamente vencedora.

A provável condenação de Lula representa algo que vai muito além da inviabilização de sua candidatura em 2018, mas a consagração da sistemática dilapidação de direitos constitucionais que se iniciou em abril de 2016 sob a unção “contrajamajoritária” do STF e o júbilo plutocrático do mercado, que já demonstrou não gostar muito desse negócio de eleições.

Entre Barroso e Drummond, não há como não ficar com este, para quem “os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.  Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”.