O massacre do estudante que morreu após beber 30 doses de vodca

Atualizado em 4 de março de 2015 às 12:12
Humberto
Humberto

 

“Melhor morrer de vodca do que de tédio.”

A frase acima está no Facebook do estudante Humberto Moura Fonseca, 23 anos, morto depois de beber 30 ou mais doses de vodca no último sábado. Ele participava de uma festa com bebida liberada em uma chácara em Bauru, cidade em que cursava engenharia elétrica. A festa era de estudantes de engenharia.

Após divulgação na imprensa, a frase circula hoje pelas redes sociais acompanhada de insinuações de que o responsável pela tragédia foi o próprio rapaz.

“Triste ver gente sem metas na vida”, escreveu a usuária Samira Queiroz no Twitter. “E o babaca morreu”, disse Pedro Sprangin na mesma rede social. “Realizou o ‘sonho'”, postou Leandro Capilluppi. “Parabéns, você atingiu seu objetivo”, disse Giovanna Pedroso. Etc, etc.

O que pode inspirar alguém a dizer coisas assim? O desprezo pela vida de um semelhante? Ou a perplexidade diante de uma morte absurda? Prefiro ficar com a última opção.

Overdose acidental nunca foi tratada como suicídio em qualquer lugar do mundo.

O álcool pode levar qualquer um a se expor a situações perigosas, especialmente ao consumo do próprio álcool em doses potencialmente letais. Porque quem bebe perde temporariamente as funções do cérebro responsáveis pela inibição e capacidade de julgar o certo do errado. Isto é científico.

Dizer que qualquer fração da culpa é de Humberto, alguém de quem não se conhece o perfil psicológico, é de uma perversidade obtusa.

Mas a Lei precisa e deve trabalhar. Dois organizadores da festa foram presos imediatamente. Eles serão acusados de homicídio com dolo eventual, aquele em que se realiza um ato tendo consciência de que a vítima poderá morrer em sua decorrência.

A culpa é deles? Não há registro de que os organizadores tenham empurrado as 30 doses de vodca pela goela de Humberto. Nem dele nem dos outros estudantes que participaram de uma competição para descobrir quem bebia mais. Além da vítima fatal, três foram parar no hospital em coma alcóolico mas sobreviveram.

O Ministério Público Estadual se diz empenhado em encontrar os culpados. Descobriram que a festa era clandestina, realizada sem alvará, e que não havia socorro emergencial à disposição.

Minha opinião é que a não ser que o MP tenha alcançado a sofisticação de processar e punir tradições de décadas e décadas como as orgias alcoolicas dos universitários brasileiros, vai acabar colocando na cadeia dois bodes expiatórios. No curso de engenharia, especificamente, este descontrole é endêmico.

Digite na busca de imagens de Google as palavras “festa” e “engenharia”. Você vai encontrar cartazes e folhetos que infalivelmente celebram o exagero no consumo de bebidas alcoolicas.

Do curso de engenharia da UFES em que estudei nos anos 2000 vem o cartaz da 42ª Calourada de Engenharia. Em letras garrafais: “A maior festa open bar do ES”, “1000 grades de Brahma liberadas”, “Vodka (sic) com energético liberados”, “Tequila liberada para as mulheres”. Enquanto estudei lá, dois estudantes morreram em festas, uma delas de engenharia. As confusões na infame festa “Abre Bodes”, que reunia os cursos de exatas, eram praxe.

Eu morei durante um ano numa república com três destes estudantes de engenharia. Usavam a bebida para escapar da pressão dos estudos e para vencer a timidez que parece acompanhar quem tem facilidade com números e equações.

Viviam a rotina de estudar obsessivamente um assunto árido, reprovavam em matérias que pareciam moldadas para tirar a sanidade do estudante e mal viam seres humanos do sexo feminino no dia a dia. Na sexta-feira à noite, pareciam aqueles elefantes indianos que volta e meia comem frutas fermentadas do chão, ficam loucos com o álcool e destroem vilas inteiras com suas patas gigantes.

A cultura do abuso do álcool nos cursos de engenharia precisa ser levada em conta na hora de encontrar os culpados pela morte de Humberto. Senão esta cultura, o descaso de quem deveria olhar melhor para estes rapazes que, como ele, passavam os primeiros anos longe de casa em meio a um dia a dia escorchante.

“Meu filho perdeu a vida por uma brincadeira de mau gosto”, disse Josely Pinto de Moura, mãe de Humberto, à Folha de S. Paulo. “Uma festa assim instiga o rapaz a beber, ele vai sendo motivado para isso”, disse.

Mãe sabe tudo.

Ao ver o cadáver de Humberto, a Unesp foi a primeira a tirar o corpo fora. Disse que esse tipo de festa é proibido, que aconteceu fora dos muros da universidade e, de quebra, exibiu um trecho de uma portaria em que conseguiu ignorar que o manjadíssimo plural de “campus” é “campi”.

“É vetado o uso de bebidas alcoólicas nas dependências dos Câmpus Universitários”. Além disso, em todas as Unidades, é realizada intensa campanha alertando para os perigo do consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Se fazem mesmo estas campanhas, está pouco. Façam mais. Levem psicólogos, conversem com estes rapazes. Comecem pela engenharia.

(A frase do perfil de Humberto, aliás, é do poeta russo Vladimir Maiakóvski, não cita especificamente a vodca e pertence a um poema em que este homenageia o colega Sergei Yesenin, que se suicidou em 1925.)