Os traidores ao longo da história. Por Cavalcanti da Gameleira

Atualizado em 26 de abril de 2016 às 15:35
Ilustração de Domingos Calabar
Ilustração de Domingos Calabar

Cavalcanti da Gameleira, autor do texto a seguir, é historiador.

Da tragicomédia golpista performatizada no recinto da Câmara no último dia 17, muito já se falou e escreveu no campo progressista. O blogueiro Fernando Brito, do Tijolaço, abismou-se com tanta gente de “kintakatiguria” invocando Deus mas fazendo o Diabo. Kiko Nogueira, do DCM, comparou o recinto parlamentar a um bordel e a um puteiro. Na semana anterior, um jornalista espanhol, justiceiramente, disse que o Brasil configurava um “mundo ao contrário”, onde se invertiam os valores e uma assembléia de corruptos buscava incriminar uma Presidenta reconhecidamente digna e honesta.

Dessa singularidade brasileira, que faz o nosso país parecer um mundo de ponta-cabeça, já se havia apercebido, ainda no século XVII, o holandês Gaspar van Baerle, cronista da ocupação batava em Pernambuco entre 1637 e 1644. Barléus – seu nome latinizado – observou com espanto que não vigiam nos trópicos nordestinos as normas de decência e de boa moral que possibilitavam uma vida política e social civilizada nos países da Europa do Norte.

Indignado, invectivaria os costumes da colônia açucareira, assinalando que ultra equinotialem non peccavi –  não existe pecado ao sul do Equador. Acreditava Barléus que a mesma linha imaginária que dividia o planeta em hemisférios opostos dividiria, também, a Virtude do Vício.

Não que os comportamentos viciosos (ou supostamente viciosos) deixassem de ser combatidos, no Brasil português, por tribunais de exceção como aquele instituído por Eduardo Cunha para destituir a Presidenta. Por aqui, a Inquisição não deixou de ser um tribunal de exceção: outro Cunha, D. Nuno da Cunha e Ataíde, exerceu o papel de Inquisidor-Mor nos tempos coloniais.

Existem nomes predestinados. Do inquisidor Cunha colonial, que era Bispo de Elvas, Gilberto Freyre dizia que vivia a perseguir bruxas e a temer suas feitiçarias: combatia-se, de fato, a condição feminina. Temiam-se as mulheres de poder – que nenhuma delas degenerasse numa Dilma.

As bruxas do Brasil Antigo eram também acusadas de pacto com o Diabo Vermelho. Os santos inquisidores, perplexos em sua hipocrisia, a um só tempo amaldiçoavam e se quedavam fascinados pelas relações lúbricas das feiticeiras com o Demônio. O Visitador Inquisitorial no Pernambuco de 1591, Heitor Furtado de Mendonça, desencavou minuciosamente as façanhas sexuais da bruxa Maria Gonçalves, apelidada de “Arde-lhe o Rabo”, em seus conúbios danados com o Anticristo. Sob a capa do moralismo incorruptível do Juiz , escondia-se a tara e a curiosidade malsã do inquisidor. Lava  Jato não é coisa nova por aqui.

Nos últimos dias, e particularmente durante a votação da admissibilidade do impeachment, nossa Alma Coletiva foi ativada pelo despertar do traidor arquetípico. Cunha e Temer já foram comparados a Silvério dos Reis. O vice-presidente postou seu áudio nas redes sociais, se autoinvestindo traiçoeiramente da função de Presidente, num mesmo 11 de abril que foi o dia em que Tiradentes foi dedurado. Recorrência significativa da história, outra vez. Significativa, mas ainda não suficiente. Os arcanos da Traição ainda estavam por revelar, sob o pano de fundo da votação, o perfil funesto de mais um histórico lesapátria.

Confesso que os meus brios de Cavalcanti pernambucano ressentiram-se, profundamente, que da bancada pernambucana da Câmara tivesse procedido o voto que definiu a admissibilidade do impeachment da Presidenta. Acusei como um golpe as palavras do deputado Bruno Araújo – outro Cavalcanti, por sinal – quando ele disse, ao declarar seu voto, que Pernambuco nunca faltou ao Brasil. Isso é verdadeiro, mas no contexto em que foram pronunciadas, elas exalaram um odor de sacrilégio.

Pernambuco jamais faltou ao Brasil quando se tratou de expulsar do solo sagrado da Pátria estrangeiros insolentes, como no caso da Insurreição Pernambucana que, em 1654, expulsou do Recife os últimos ocupantes holandeses. Nessa ação heróica destacaram-se homens de origem plebéia como o madeirense João Fernandes Vieira, o negro Henrique Dias e o índio Felipe Camarão. Plebeus como Lula, pernambucano que canalizou para si as excelsas virtudes nacionalistas daquela Trindade restauradora.

A luz que emana daquela Trindade que modelou na luta a nossa raça possui também, como não poderia deixar de ser, a sua própria sombra. Esta se revela na pessoa de outro Traidor arquetípico: Domingos Calabar, que se passou para a parcialidade holandesa. A sombra calabarense, há tempos, parece pairar sobre Pernambuco. Tentou encarnar em Eduardo Campos, que todavia morreu precocecemente. Falaria depois pela boca de Bruno Araújo. Pernambuco, porém, jamais acolheu Calabar. Sabemos como a História acabou: Calabar justiçado e o Brasil vitorioso contra as forças antinacionais que tentaram obstar o seu desenvolvimento soberano.

O que sucedeu no século XVII antecipa o que sucederá agora. Malgrado seu sucesso inicial, o golpe parlamentar em curso já traz na testa o selo da derrota, posto que nada mais faz do que repetir a traição inglória dos Calabares da vida.