‘Entrevista com Escritores Mortos’ 1: Liev Tolstói

Atualizado em 3 de julho de 2015 às 18:30

A “entrevista” abaixo faz parte de nossa série “Conversas com Escritores Mortos”, que acaba de ser revitalizada. Nessa nova fase, escolhemos como primeiro entrevistado o escritor russo Liev Tolstói (1828 – 1910), autor do célebre romance Anna Karenina. As frases abaixo, por sua vez, foram retiradas do romance Ressurreição, de 1899.

Tolstói

Sr. Tolstói: Apesar de seu nascimento aristocrático, o senhor sempre foi um defensor voraz dos desafortunados, conhecido inclusive pela sua generosidade em relação aos camponeses que habitavam suas terras na Rússia. Isso, naturalmente, não era muito comum entre os russos endinheirados da sua época. Assim sendo, tenho curiosidade em saber o que o incentivou a agir de maneira tão diferenciada (e, permita-me dizer, admirável)?

Uma aversão profunda pelo meio ao qual pertencia, o meio onde ocultam zelosamente os sofrimentos causados a milhões de pessoas a fim de assegurar os confortos e as extravagâncias de uma minoria, para que as pessoas daquele meio não vissem, não pudessem ver tais sofrimentos e, portanto, a crueldade e o crime de suas vidas.

Isso me parece um pouco drástico.

De modo algum. Pensa-se, habitualmente, que o ladrão, o assassino, o espião, a prostituta, uma vez que admitam ser a sua profissão um mal, devem envergonhar-se dela. Mas o que acontece é exatamente o contrário – As pessoas a quem o destino ou os próprios pecados e erros colocaram em uma determinada situação, por mais irregular que ela seja, criam uma visão geral da vida em que a sua situação lhes parece boa e respeitável. Para a manutenção de tal visão, conservam-se em um círculo de pessoas onde se adota a mesma noção que elas criaram a respeito da vida.

Isso nos é espantoso quando se trata de ladrões, que se gabam de sua habilidade, e de prostitutas, que exibem sua devassião, ou ainda de assassinos, que se orgulham de sua crueldade. Mas isso nos espanta só porque o círculo-ambiente dessas pessoas é restrito, e, sobretudo, porque nos achamos fora dele… Porém não ocorre o mesmo fenômeno com os ricos, que se orgulham da sua riqueza, ou em outras palavras, da espoliação, ou com os chefes militares, que se orgulham do seu poderio, ou seja, da sua violência? Não enxergamos em tais pessoas uma noção da vida, do bem e do mal, deturpada, com o propósito de justificar a sua condição, apenas porque o círculo de pessoas que adotam essas noções deturpadas é maior e nós mesmos pertencemos a ele.

O senhor relacionou a palavra “riqueza” à palavra “espoliação” de maneira resoluta. Isso me leva a crer que, na sua concepção, essas duas coisas andam de mãos dadas. É verdade?

Acho mais correto dizer que, na minha opinião, a posse privada da terra é ilegítima. A terra não pode ser objeto de propriedade, não pode ser objeto de compra e venda, como a água, como o ar, como os raios de sol. Para mim, todos temos direito igual à terra e a todos os benefícios que ela oferece às pessoas.

A causa principal e mais próxima da pobreza do povo consiste no fato de que a terra que o alimenta não está em suas mãos. Assim, a terra, tão necessária ao povo, cuja falta leva as pessoas à morte, é cultivada por pessoas reduzidas à pobreza extrema apenas para que o trigo que vem dela seja vendido no exterior e, consequentemente, para que os senhores de terra possam comprar para si chapéus, bengalas, carruagens, objetos de bronze, etc.

Às vezes, sr. Tolstói, essa não lhe parece a ordem natural das coisas?

Tanto os que trabalham como os que os obrigam a trabalhar estão convencidos de que as coisas são assim e devem continuar assim, que ao mesmo tempo em que em suas casas as mulheres grávidas trabalham acima de suas forças e seus filhos, de touquinha na cabeça, retorcem as pernas e sorriem com ar de velho, à beira da morte por inanição, eles tem de construir um palácio para um homem imbecil e fútil, um daqueles mesmos que os arruínam… O povo morre, está acostumado à própria mortandade, em seu meio criaram-se maneiras de viver propícias à mortandade – a morte de crianças, o trabalho das mulheres acima de suas forças, o alimento insuficiente para todos, em especial para os velhos.

E o povo entrou nessa situação de modo tão gradual que ele mesmo não é capaz de enxergar todo o seu horror e não se queixa disso. Portanto nós também pensamos que tal situação é natural e assim deve ser.

O senhor sempre foi um crítico dos sistemas judiciário e penitenciário da Rússia de sua época, que infelizmente possui algumas características em comum com muitos dos sistemas atuais. Quais, em sua opinião, são os principais equívocos cometidos pela justiça?

Muitos juízes não seguem a regra de perdoar dez culpados para não culpar um inocente; ao contrário, eliminam dez pessoas inofensivas a fim de eliminar uma verdadeiramente perigosa. Essa explicação me parece muito simples e clara, mas justamente essa clareza e simplicidade me forçam a hesitar em aceitá-la. Às vezes, parece simplesmente impossível que um fenômeno tão complexo tenha uma explicação tão simples e terrível, que todas aquelas palavras sobre a justiça, o bem, a lei, a fé, Deus etc. sejam apenas palavras e escondam a crueldade e o egoísmo mais grosseiro. A única pergunta que faço é a seguinte: para que e com que direito algumas pessoas trancafiam, torturam, deportam e matam outras pessoas, quando elas mesmas são iguais às pessoas quem elas torturam, chicoteiam e matam?

A manutenção dos interesses de uma classe.

O tribunal, a meu ver, é apenas um instrumento administrativo cujo objetivo é assegurar a manutenção do estado de coisas vigente, vantajoso para a nossa classe.

E quanto ao sistema carcerário? O senhor o considera eficiente?

De modo algum. As prisões não podem fornecer segurança porque os criminosos não ficam lá eternamente e podem ser soltos. Ao contrário, nessas instituições conduzem tais pessoas ao grau mais alto do vício e da depravação, ou seja, aumentam o perigo.

O senhor visitou muitas prisões enquanto pesquisava para escrever “Ressurreição”, um de seus romances mais famosos. O que aprendeu em suas andanças?

Conclui que a composição dos presos se divide em cinco categorias… A primeira categoria é formada por pessoas absolutamente inocentes, vítimas de erros judiciais. Esta não é uma categoria muito numerosa, representando cerca de sete por cento. Outra categoria é formada por pessoas que são julgadas por crimes cometidos em circunstâncias excepcionais, atos que, nas mesmas circunstâncias, quase seguramente teriam sido praticados por todos aqueles que as julgaram e as condenaram.

Essa categoria representa pouco mais da metade de todos os criminosos. A terceira categoria é formada por pessoas condenadas por ações que, no entender delas, eram as mais boas e costumeiras, porém no entendimento de pessoas a ela estranhas, e que redigem as leis, são crimes. A tal categoria pertencem as pessoas que venderam bebida clandestinamente, cortaram capim ou pegaram lenha de grandes proprietários e em florestas do Estado.

A quarta categoria é formada por pessoas classificadas como criminosas só porque estão moralmente acima do nível médio da sociedade. Entre elas estão os criminosos políticos, socialistas e grevistas. O percentual de tais pessoas, as melhores da sociedade, é alto.

Por fim, a quinta categoria é formada por pessoas em relação às quais a sociedade tem uma culpa maior do que elas, em relação à sociedade. São pessoas abandonadas, atordoadas pela opressão constante e pelas constantes tentações, cujas condições de vida parecem encaminhar de forma sistemática param a necessidade de um ato que é chamado de crime. A tais pessoas pertencem muitos ladrões.

O senhor disse que os “criminosos políticos, socialistas e grevistas” são moralmente superiores ao restante da sociedade. Por que?

Ao conhecê-los de perto, convenci-me de que não são rematados canalhas, como alguns os representam, e também não são rematados heróis, como outros os julgam, e sim pessoas comuns, entre as quais há, como toda parte, pessoas boas, más e medianas. Muitas dessas pessoas tornaram -se revolucionários porque consideravam-se sinceramente obrigados a lutar contra o mal existente; mas havia algumas que escolheram aquela atividade por motivos egoístas, vaidosos; a maioria foi atraída para a revolução por um desejo de perigo, sentimento próprio à juventude vigorosa.

Hmmm…

A diferença, em favor dos revolucionários, entre eles e as pessoas comuns, é que a exigência de moralidade entre os revolucionários era mais alta do que as adotadas nas esferas comuns. Assim sendo, entre eles, os que se situavam acima do nível mediano ficavam imensamente acima dele.

Voltemos, sr. Tolstói, à “quinta categoria de criminosos”; formada, em suas palavras, por pessoas em relação às quais a sociedade tem uma culpa maior do que elas. O que o senhor quis dizer com isso?

O criminoso comum não é nenhum facínora em especial, mas sim a pessoa mais comum do mundo, que se tornou o que é agora só porque vivia em condições que engendram pessoas assim. E é claro que, para que não existam pessoas assim, é preciso esforçar-se para eliminar as condições em que se formam essas criaturas infelizes. O problema é que nós não só não fazemos nada a fim de eliminar as condições que formam tais pessoas como ainda incentivamos os estabelecimentos em que elas são criadas.

Esses estabelecimentos são conhecidos: fábricas, empresas, oficinas, casas de tolerância, tabernas, botequins. E nós não apenas não eliminamos esses estabelecimentos como, considerando-os necessários, os incentivamos e os regulamentamos. Formamos desse modo não só uma e sim milhões de pessoas, depois prendemos uma delas e imaginamos que fizemos algo útil.

E, frente a isso, a justiça é ineficaz. Não é mesmo?

Há vários séculos mortificam as pessoas que são consideradas criminosas. Pois bem, e elas por acaso desapareceram? Não desapareceram, a sua quantidade apenas aumentou, por conta dos criminosos degradados pelos castigos e também por conta daqueles criminosos que são promotores ou juízes, juízes ou instrução e carcereiros, que julgam e castigam as pessoas.

Muito bem, sr. Tolstói – e como resolver esse problema?

A questão toda é que essas pessoas reconhecem como lei aquilo que não é lei e não reconhecem como lei aquilo que é a lei eterna, invariável, inadiável, escrita por Deus no coração das pessoas. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore ou forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor, assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos dano a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. Precisamos de amor. E não pode ser diferente, porque o amor recíproco entre as pessoas é a lei básica da vida humana.

Alguma consideração final?

Peço que se lembrem de uma coisa: As mais terríveis transformações acontecem quando paramos de acreditar em nós mesmos e passamos a acreditar nos outros.