Um ano depois do golpe, a vida de uma paneleira. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 31 de agosto de 2017 às 17:19
Regina Célia em 2015, mudando o Brasil

 

No dia 31 de agosto do ano passado, o plenário do Senado votou pelo impeachment de Dilma Rousseff por 61 votos a 20.

Regina Célia se lembra bem: ela comemorou a vitória com um porre de champanhe com Marlos Vinícius e os meninos na varanda do apartamento em Pinheiros onde bateu tanta panela.

Regina Célia era uma paneleira, sim. Com muito orgulho, com muito amor.

Ela foi para as ruas. Tinha lido o editorial do Estadão dizendo que o impeachment era o “único remédio para a crise”. Ela viu Miriam Leitão falar na TV que “o pior estava no retrovisor”.

Ela acreditou no dono da Riachuelo, Flávio Rocha, quando ele avisou que “a retomada do crescimento vai ser mais rápida do que a gente imagina, porque está acontecendo uma mudança de mentalidade, de enfoque, de forma de ver o mundo, do papel do Estado na economia”.

Como esquecer as gostosas tardes na Paulista com o pessoal do Revoltados Online, Lobão, o Frota com seu abraço apertado, o Kim, o outro rapaz esquisito, a Jana?

Todos juntos num só coração para salvar o Brasil da Orcrim. Primeiro tiramos a Dilma ladra, depois o Temer e então todos os outros safados até virarmos Miami.

Regina Célia olha para Marlos Vinícius estatelado no sofá às 3 da tarde. Ele não arruma emprego e passa as horas tomando cerveja. Nem sombra do Marlos que gritava “Luladrão!” e “Ei, Dilma, vai tomar no cu!” com o peito estufado.

Tudo que era sólido se desmanchou no ar.

A PF isentou Dilma e ministros do STJ em investigação sobre obstrução de Justiça. Técnicos do TCU isentaram Dilma pelo prejuízo com Pasadena. As tais pedaladas não existiram.

A taxa de desemprego está em 15 milhões, o roubo é escancarado, Gilmar Mendes não sai dos jornais, voltamos ao mapa da fome, a filha Victorya Helenna já foi assaltada três vezes nas últimas três semanas, o prefeito é um camelô hiperativo, os malditos mendigos estão no Pão de Açúcar, Janaína manda recado para o Trump, Marlos Vinícius teve de pedir empréstimo ao irmão dela que o despreza, parte da Amazônia será entregue à filha de Jucá, o carro da família foi vendido para pagar dívidas, Temer não vai sair nunca.

Ela se lembra da empregada que teve de demitir. Estão destruindo Farmácia Popular, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Ciência sem Fronteiras, Luz para Todos, Bolsa Família.

Como estará Nazaré? “Ah, foda-se”, reflete. “Preta do caralho, vai atrás de cota agora”.

Regina Célia olha para sua panela e se pergunta: “Eu errei? Fui enganada? Não era, então, tudo culpa do PT?”

“Claro que era”, ela diz baixinho para si mesma, coçando o couro cabeludo desmatado. “Eu faria tudo de novo. Tudo!”.

Regina Célia não é mais uma criança. Ela é parte do exército de guerreiros do povo brasileiro, uma elite de cidadãos de bem que livrou o país do comunismo.

“O preço que a gente tá pagando é pequeno perto da importância de termos derrotado o bolivarianismo”, ela pensa. “É a meritocracia, porra.”

Enquanto Marlos Vinícius ronca na sala, a baba bovina escorrendo na camisa velha do São Paulo, uma onda de ódio familiar, saudosa, moleque, brejeira, invade seu corpo. Bolsomito vem aí.

No armário da cozinha, embaixo da pia, a panela se prepara para cumprir a sugestão dada por Marisa Letícia.

*Baseado em fatos reais