“Veremos o que sobra da nossa democracia depois desse processo”, diz a professora de filosofia Silvana Ramos, da USP

Atualizado em 16 de abril de 2016 às 22:43

muro brasilia

 

Especialista em questões democráticas e professora de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia da USP, Silvana de Souza Ramos já afirmou que “os protestos pelo impeachment vão contra qualquer espírito democrático”.

Ela enxerga como possível a busca por alternativas nos diálogos entre as diferentes “esquerdas” brasileiras, e esse pode ser um aspecto positivo dessa situação, ainda que o golpe se efetive. Embora a professora reconheça que os tempos são difíceis, ela vê o florescer da luta democrática justamente nos protestos que são taxados de maneira errada como “pró governo Dilma”.

O DCM fez uma entrevista com ela sobre o momento nacional.

Como você acha que serão os protestos de domingo, durante a votação do impeachment, com um muro dividindo Brasília?

Eu vi aquele bolão que estão fazendo, encabeçado pelo Paulinho da Força. Achei um desrespeito absurdo o fato de se levar na brincadeira algo que é sério. O destino do país está sendo tratado por alguns como um jogo e, pior, como uma briga entre torcidas. Eu me preocupo quando observo as pessoas tomadas por essa paixão, entre o contra e o a favor.

Isso pode leva-las a comemorar cada voto no domingo, sem se dar conta do que está em questão. Essa banalização dos acontecimentos, seja pela paixão cega, seja pela brincadeira inconsequente é danosa para a experiência política.

É claro que é preciso se preocupar também com a violência, mas espero que as pessoas tenham bom senso na rua. Tudo isso vai ser espetacularizado pela mídia e é uma pena. A democracia nunca ganha com isso, pois o tempo da política é outro, fora desse imediatismo.

Depende de negociação e, principalmente, de projetos de longo prazo. Por isso tudo, me preocupa o que pode acontecer no domingo. Pode ser que algo de positivo nos surpreenda, mas todo o processo até agora se deu de maneira lamentável.

Porém, mesmo com todos os problemas colocados, a gente tem que começar a pensar no depois, no dia seguinte.

Como assim?

A gente vai ter que olhar para a democracia, para a nossa jovem e frágil democracia, e ver o quanto ela ficou machucada depois desse processo. Veremos o que vai sobrar dela e por onde podemos começar a trabalhar na sua reconstrução. A mobilização deve continuar, mas precisa ser mais ambiciosa.

Nós ficamos muito tempo presos ao imediato, pensando em ganhar votações e disputas pontuais nas eleições e no Congresso. É claro que isso também é importante, mas não é tudo. Agora, nós temos que nos permitir repensar um projeto de país.

Muito se discute se o que está acontecendo pode ser uma brecha para construir alternativas boas para o futuro. Ao que parece, a alternativa do lulismo está chegando ao fim, desgastada por diversas razões, talvez porque concluiu seu ciclo. Surge aí um vácuo e o nosso desafio é impedir que ele seja ocupado pelo retrocesso e pela perda de direitos tão arduamente conquistados pelo povo brasileiro.

E a gente pode preenchê-lo? 

Bom, a oposição não construiu nada de propositivo, nada de novo. É só ver a trajetória do PSDB e a recepção nada amistosa recebida por alguns de seus líderes nas manifestações recentes.

Não vejo também nada nesse aspecto na Marina Silva, embora ela seja uma figura importante para as eleições de 2018. Aconteceu o desastre de Mariana, em Minas Gerais, e ela não se pronunciou de maneira enfática. Como alguém que defende uma bandeira ecológica, achei aquilo simbólico. Eu esperava uma fala dela, contundente, capaz de trazer uma visão crítica sobre aquele desastre.

A gente vem de um ciclo de desenvolvimentismo, primeiro com Lula e principalmente com Dilma. Precisamos discutir ecologicamente como resolver os nossos problemas, sem perder de vista a defesa das conquistas sociais e políticas. A aliança dessas pautas seria um desdobramento interessante para o nosso desenvolvimento democrático, mas eu não vejo isso expresso em novas iniciativas. A Marina parece uma figura parasitária diante de tantas oportunidades, sem conseguir se firmar por meio de um discurso claro. Além disso, ela insiste em se colocar numa posição de simples negação da política, ao mesmo tempo em que se alia a atores tradicionais da política brasileira.

Para a esquerda em geral, eu vejo aparecer a construção de um importante diálogo nos protestos de rua, vejo uma reflexão que se constrói por meio de manifestos e de diferentes mobilizações. Vejo artistas, intelectuais, estudantes, feministas, profissionais liberais, juristas, trabalhadores, o movimento negro, enfim, diferentes setores da sociedade que tomam a voz nesse momento difícil. E não se trata de um mero “suporte do governo Dilma”, como muita gente da oposição quer fazer crer. Ao contrário, vejo diferentes pautas conversando entre si.

Há pouco tempo, o movimento feminista tinha dificuldade para conversar com outros movimentos, por exemplo. Diferenças muitas vezes ultrapassáveis persistiam. A gravidade da situação atual tem oferecido a oportunidade para que essas diferenças sejam superadas em nome de um debate mais amplo em torno de direitos ameaçados. Essa confluência de diversos setores pode ajudar na construção de alternativas para a luta democrática.

Eu acho até que a gente não pode negligenciar o diálogo com setores do centro, especialmente com aqueles que são sensíveis às questões democráticas. Há também muita gente perdida, sem lado definido, perplexas diante da situação. Eles podem partilhar valores democráticos e não se confundem com os autoritários que pedem a volta do regime militar, por exemplo. Há aí um diálogo possível.

Neste momento, a questão não é simplesmente defender o governo Dilma. Eu pessoalmente tenho críticas à condução do governo empreendida por ela. Mas isso não significa aceitar a violência com que ela tem sido tratada. Violência em todos os níveis.

Penso que mesmo alguém que defende esse impeachment não acredita na probidade de um governo Temer/Cunha. Nós todos precisamos discutir a situação de acordo com a complexidade que se apresenta diante de nós, precisamos pensar nas possíveis consequências de um impeachment conduzido dessa maneira e por essas pessoas.

O que você acha da votação do impeachment para a democracia?

É difícil responder isso, porque a situação é paradoxal, começando pelo fato do presidente da Câmara, o Eduardo Cunha, ocupar o local que ocupa neste processo. Pesam contra ele muitas acusações e isso nos deixa estupefatos.

Muitas das pessoas que julgam o impeachment de Dilma deveriam estar sendo julgadas, sem nenhuma dúvida. Ao mesmo tempo, existe um debate jurídico sobre a responsabilidade da presidenta, pois não há consenso sobre os supostos crimes que ela teria cometido. Como adequar esse processo de impedimento com uma verdadeira luta contra a corrupção? No mínimo, é preciso dizer que a situação é bastante obscura.

Ela sofre o impeachment pelas pedaladas fiscais, mas o que fez ganhar força no processo foi a Lava Jato?

Pois é. Existe essa confusão enorme sobre as reais causas para conduzir o impedimento. Por isso fica complicado encontrar soluções para corrupção no Brasil. A Lava Jato, ou qualquer investigação dessa natureza, deveria ser executada com tranquilidade e visando caracterizar os crimes cometidos para apontar soluções estruturais que pudessem minimizar a possibilidade de malfeitos futuros.

Não é isso que acontece. Tudo é espetacularizado, e nunca são discutidas questões cruciais como a reforma política ou o financiamento de campanhas, por exemplo. Nós sabemos que a corrupção não vai acabar simplesmente com a derrubada do governo atual, porque suas causas não serão atacadas. Pior, essa derrubada tampouco dará lugar a um governo capaz de unificar o país. É preciso que a população tenha consciência disso.

A culpa é da grande mídia ou temos um problema educacional maior que impede a população brasileira de entender o que acontece?

É uma mistura dos dois, o que evita a realização das reformas que precisamos. O problema é que tudo se perde quando se torna um espetáculo direcionado a um partido ou a uma pessoa, quando o processo é instrumentalizado por aqueles que disputam o poder. Essa espécie de caça às bruxas termina sem saber quem é o juiz e quem é o criminoso da história, como no caso do julgamento de Dilma Rousseff. Do ponto de vista da experiência democrática, essa confusão toda é muito triste.

A tristeza ocorre porque já há uma desinformação básica que deixa as pessoas na ignorância: não se sabe muito bem o que é o Poder Legislativo, o Executivo, o Judiciário, qual a função de cada um. Não sabemos o que compete a cada instância. A confusão é enorme. Vemos um buraco na calçada e culpamos a Dilma. Nem ocorre para quem reclama que aquela é uma responsabilidade do município e não do governo federal. Ora, o exercício da cidadania necessita de conhecimento, e não estamos conseguindo avançar nesse sentido.

Precisamos saber quais são as esferas de poder, como os impostos são recolhidos e como as obras são, ou não, realizadas. Sem saber isso, fica difícil explicar e combater a corrupção. Como você combate algo se você sequer entende como funciona?

É desta forma que a mídia cria ficções como o “maior escândalo de corrupção da história” que acaba pegando por conta da desinformação. A imprensa fala sobre muitas coisas sem de fato esclarecer. Tudo isso é muito problemático hoje e pode continuar sendo ruim no futuro.

A mídia se aproveita da confusão, mas não dá para responsabilizar só ela neste processo. Essa imprensa que temos é de algum modo o reflexo da sociedade e das deficiências da nossa própria experiência democrática. Não dá para ter a ilusão de encarar a mídia como o “único câncer” que, ao ser combatido, resolveria todas as deficiências de nossa democracia. A esquerda precisa botar o pé no chão e a partir de agora não pensar em maus absolutos, apontando para um único problema. Ela precisa de debates amplos, capazes de construir novos instrumentos para o exercício da cidadania.

Temos um trabalho importante de democratização da mídia para fazer nos próximos anos, mas muitos dos absurdos que aconteceram foram resultado do próprio governo que não reagiu. Aliás, os governos em geral não têm compromisso com a comunicação, pouco fazem para divulgar e esclarecer suas ações. Há avanços, mas resta muito a fazer.

Por que os governos não têm esse comprometimento?

Isso acontece porque quanto maior o silêncio sobre algumas questões, tanto melhor para muitos desses governos. É um problema não falar mais aprofundadamente sobre as obras ou mesmo sobre as decisões que são feitas pelas diferentes esferas de poder. A cidadania deve exigir transparência e esclarecimentos constantes.

Sabemos que um dos resultados dessa distância entre o cidadão e o poder é justamente a repulsa em relação a toda classe política. Recusa que na verdade enfraquece a nossa luta por liberdade. Afinal, precisamos reinventar a política, pois não basta recusá-la.

De certo modo, nós podemos ver essa crise da representação aparecer também na nossa relação com a mídia. Esta não parece capaz de dar voz à complexidade dos debates que se desenrolam nesse momento. Muitas pessoas não se sentem representadas pelos veículos de comunicação, e essa reclamação não pode ser negligenciada.

Ganharíamos muito se os posicionamentos políticos dos veículos fossem claros. Seria um ganho democrático se tivéssemos o direito de saber qual o ponto de vista de cada um deles, haveria mais transparência. Seria um ganho haver maior pluralidade de opiniões sendo veiculadas.

Não há dúvida de que a liberdade de imprensa é um valor a ser defendido. Porém, não há clareza sobre a melhor forma de realizar essa liberdade, a mais plural, a mais transparente.