O que a técnica de meditação Vipassana trouxe a nosso colunista

Atualizado em 13 de outubro de 2012 às 15:45

O jornalista Jomar Morais fez um curso em que meditava 12 horas diárias. Seu relato:

Técnica milenar ajuda a superar ansiedade,  medo e vícios e reduz o impulso à violência
Uma das mais antigas técnicas de meditação.

A estação do ano é verão, mas nas alturas da Serra do Mar, em meio à Mata Atlântica, chove e faz frio. Na escuridão úmida, luto comigo mesmo, experimentando uma estranha sensação de sufoco sobre o colchão acomodado no chão do quarto. São 2h da madrugada e, em ondas crescentes, emergem do fundo da alma o medo, a suspeita de que algo ruim pode estar acontecendo aos meus familiares a 2 500 quilômetros de distância, uma impressão de exílio sem fim… Então, sinto vontade de levantar, pedir ajuda, sair correndo pela trilha na mata, de volta ao porto seguro de minha rotina cheia de sons e distrações. São minutos intermináveis até que me dou conta de que estou lidando com meras fixações mentais, fantasmas internos gerados por condicionamentos antigos que eu desconhecia. E me bastou encará-los e observá-los em seus reflexos no meu corpo, sob a forma de sensações desagradáveis, para que se dissolvessem sem maior esforço.

Foi como um passe de mágica. Olhar para os meus fantasmas com eqüidade, descartando o sentimento de aversão que parecia nutri-los e fortalecê-los, devolveu-me o equilíbrio e a serenidade. Em pouco tempo, adormeci, preparando-me para a nova jornada comigo mesmo que se iniciaria antes dos primeiros raios de sol.

Encerrava-se assim,  o meu segundo dia no Dhamma Santi, um núcleo de meditação instalado no município de Miguel Pereira (RJ), onde há alguns anos se pratica um tipo de meditação que tem chamado a atenção em vários países por seus efeitos revolucionários no processo da mente e na busca do autoconhecimento: a vipassana, conforme a tradição ensinada pelo birmanês radicado na Índia S. N. Goenka.

O curso dura 10 dias e exige dos alunos uma disciplina rigorosa para os padrões ocidentais: silêncio total e ausência de qualquer tipo de comunicação entre os participantes, segregação de homens e mulheres, alimentação vegetariana moderada e 12 horas de meditação diárias, a partir das 4h30 da manhã. Diante dessa rotina monástica e da overdose de concentração, não surpreende que mesmo um praticante regular de meditação, como eu, encontre ali uma experiência impactante que descortina horizontes existenciais jamais imaginados.

A vipassana de Goenka – na verdade, uma técnica milenar  redescoberta por Buda, há 2 500 anos – é uma viagem profunda ao inconsciente, através da observação das sensações que os movimentos da mente produzem no corpo. Um jeito simples de redirecionar o processo mental, liberando-o dos sentimentos de apego e aversão, a fonte de todo o sofrimento, ainda que ao preço de um grande esforço inicial. Como eu, todos os alunos de minha turma de 60 homens e mulheres enfrentaram dificuldades no segundo dia do curso, quando a técnica começa a aprofundar a faxina mental. Muitos voltaríamos a experimentar reações inusitadas no quinto dia, quando a vipassana entra em sua etapa mais profunda. É quando a idéia de desistir e voltar para casa reaparece, embora apenas um ou outro se renda ao desejo de fuga, ignorando que o melhor remédio nessa ocasião é insistir na prática para romper as miragens e os condicionamentos mentais que as produzem.

A simplicidade da vipassana põe a técnica ao alcance de qualquer pessoa. Entre os alunos no Dhamma Santi havia garotos de 18 anos e  sexagenários, brasileiros e estrangeiros, pessoas de diferentes níveis econômicos e culturais, muitas sem jamais ter meditado sequer 1 minuto anteriormente. Mais de 95% do grupo conseguiram atravessar o desafio do silêncio e da concentração e, em que pesem os maremotos enfrentados na intimidade do ser – alguns choraram em momentos de solidão -, no final a maioria se sentia gratificada com a experiência e disposta a repetí-la.

Nos últimos anos, a eficácia da técnica e sua aplicação universal a transformaram numa solução inédita e barata para o problema da violência prisional e da reintegração social de condenados. O Dhamma Santi de Miguel Pereira faz parte de uma rede internacional de núcleos mantidos por meio de doações e orientados por professores formados pelo próprio Goenka, um homem comum, casado, que recusa o título de guru ou iluminado e insiste numa prática meditativa pura, sem rituais – segundo ele, a real tradição herdada de Sidarta Gautama, o Buda. Mas foi o sucesso do trabalho realizado com milhares de condenados e policiais de Tihar, um presídio de segurança máxima nos arredores de Delhi, na Índia, conhecida nos anos 70 pelos métodos repressivos cruéis e as explosões internas de violência, que fizeram a fama mundial de Goenka e sua vipassana.

O primeiro curso em Tihar, iniciativa de Kiram Bedi, uma diretora empenhada em por fim ao inferno em que se transformara a prisão e a resgatar a dignidade das pessoas envolvidas com o problema, foi realizado em 1994 sob um clima de desconfiança e o temor de que Goenka, seus assistentes e policiais que sentaram juntos com presos para meditar pudessem ser transformados em reféns de marginais perigosos. Dez dias depois, presidiários ferozes e policiais truculentos apresentavam inusitados semblantes de serenidade e se confraternizaram emocionados no pátio da cadeia. O acompanhamento dos que participaram dessa primeira experiência e dos cursos realizados nos anos seguintes – com até 1 000 participantes – revelaram uma profunda alteração do clima social na prisão e uma considerável redução dos índices de reincidência entre prisioneiros que completaram suas penas e retornaram à sociedade.

A experiência em Tihar deu origem ao documentário Doing Time, Doing Vipassana (Cumprindo Pena, Praticanda vipassana), um filme laureado que tem sido exibido em vários paises e está disponível para venda em DVDs (veja http://www.dhamma.org/en/dtdv.htm  ) e em cópia livre na Internet (no eMule)

Atualmente, cursos de vipassana são realizados em prisões de países da Ásia, Nova Zelandia, Europa, nos Estados Unidos e até em Israel, com resultados animadores nos índices de melhoria das relações internas e na reabilitação de criminosos. Já os centros de dhamma (a lei natural), como são chamados os núcleos meditativos sob a orientação de Goenka, multiplicam-se nos cinco continentes – sempre sustentados por doações feitas por praticantes e sem vínculo com organizações políticas e religiosas. Essa, aliás, é uma das maiores preocupações de Goenka: evitar que a vipassana, uma técnica baseada na lei da natureza, se transforme em mero  ritual ou numa religião organizada, o que corromperia os seus objetivos.  Os cursos de vipassana acolhem pessoas de diferentes crenças e ideologias, mas durante a sua realização elas são convidadas a absterem-se de suas práticas rituais, dedicando-se exclusivamente à observação do movimento das energias interiores e o seu reflexo no corpo, sob a forma de sensações, debaixo de um rígido compromisso moral composto de cinco itens:

1. Abster-se de matar qualquer ser
2. Abster-se de roubar
3. Abster-se de toda atividade sexual
4. Abster-se de mentir
5. Abster-se de todo tipo de intoxicantes

O Dhamma Santi tem uma agenda de cursos para o ano inteiro. São também realizados cursos em Brasília e no final de outubro será ministrado o primeiro curso no Nordeste, no Convento Franciscano Ipuarana, em Campina Grande. A inscrição é sempre gratuita e, no final, o aluno é convidado a fazer uma doação de acordo com a sua vontade e disponibilidade financeira. Os professores e todos os servidores que trabalham durante o evento são voluntários e também fazem doações para que o ensino do “dhamma” alcance e beneficie outras pessoas.