1924, A Revolução esquecida de São Paulo. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 6 de julho de 2024 às 14:49
Bombardeio aéreo no centro. Foto CEDEM-Unesp

NUMA QUARTA-FEIRA, 5 DE JULHO, há exatamente um século, médios oficiais do Exército e da Força Pública, com apoio de setores populares, tomaram quartéis, estações de trem e edifícios públicos na cidade de São Paulo. Na sequência, expulsaram o governador Carlos de Campos da capital. Quatro dias depois, era instalado um governo provisório, que se manteria por pouco mais de três semanas. Nesse meio tempo, a metrópole em formação seria atacada por aviação militar, artilharia de canhões e tropas leais ao governo federal. O país vivia sob o estado de sítio da administração Arthur Bernardes (1922-1926).

O processo ficaria conhecido como Revolução de 1924. Somente um negacionismo atroz e o elitismo de sucessivos governos relegariam o mais violento combate urbano de nossa história ao esquecimento.

Não é possível deixar mais essa brutalidade cometida contra as camadas populares se tornar página virada. É preciso remoer o passado e ver o que aconteceu. O que se segue é parte de um artigo escrito há dez anos para a revista MIT, editada pelo meu querido e saudoso Fernando Paiva (1956-2022).

Distribuição de alimentos na praça do Patriarca. Foto CEDEM-Unesp

BOMBARDEIOS TERRIFICANTES

O NEVOEIRO SE DISSIPARA. O céu estava claro, mas o frio seguia intenso no início da tarde da terça-feira, 22 de julho de 1924, em São Paulo. Uma profusão de casas e fábricas estava no chão, algumas ainda envoltas em fumaça espessa. Pessoas corriam pelas ruas carregando o que podiam para fugir de cenas que algumas viveram na Europa anos antes. Após dezessete dias de “bombardeios terrificantes” desfechados por baterias de canhões situadas na colina do bairro da Penha, na zona leste, uma combinação de roncos agudos vindos do céu agitava ainda mais uma população aterrorizada.

Quem olhasse para cima contaria dez aviões em formação a 500 metros do chão. Parecia uma repetição do que se vira nos três dias anteriores, quando alguns deles fizeram evoluções para aparentemente verificar onde haveria focos de resistência.

De repente, duas aeronaves, as maiores da esquadrilha, reduzem a altitude e soltam alguns objetos. O efeito seria devastador. Seis explosivos de 60 quilos abriram crateras pelo centro e arrasaram casas e fábricas em bairros operários. Por sorte ninguém morreu. Uma testemunha contaria, mais de cinquenta anos depois, que “Os aviadores tiveram ordem de jogar bombas no Brás; diziam que a italianada era a favor da revolução”.

O Jornal do Commercio do dia seguinte relatava que “de diversos pontos partiu cerrada fuzilaria contra os aviões”.

Inútil. Os aparelhos ganharam altura, fizeram uma curva sobre a estação da Luz e voltaram para a zona leste. Em quinze minutos pousariam numa pista improvisada próxima à estação de trens de Guaiaúna, na Penha, então uma região quase rural.

Revolucionários no Cambuci. Foto CEDEM-Unesp

A REPÚBLICA EM PARAFUSO

AQUELE ERA O DÉCIMO SÉTIMO DIA de um levante que entraria para a história como a Revolução de 1924. A rebelião que envolvia São Paulo desde 5 de julho era resultado de uma intrincada teia de tensões históricas. Suas raízes estavam no agravamento de profundos problemas sociais, no autoritarismo dos governos da República Velha e em descontentamentos nos meios castrenses, que já haviam desembocado no movimento tenentista, dois anos antes.

Agora, tropas lideradas pelo general do Exército Isidoro Dias Lopes, pelo tenente João Cabanas e pelo major Miguel Costa, da Força Pública, tomaram quartéis, estações de trem e edifícios públicos e expulsaram o governador Carlos de Campos da cidade.

Várias guarnições de cidades próximas aderiram ao movimento. Setores do operariado organizado apoiaram os revolucionários e exortam a população a auxiliá-los no que fosse possível. Entre as reivindicações dos revoltosos estavam: “1º Voto secreto; 2º Justiça gratuita e reforma radical no sistema de nomeação e recrutamento dos magistrados (…) e 3º Reforma não nos programas, mas nos métodos de instrução pública”. No plano político, destaca-se ainda “A proibição de reeleição do Presidente da República (…) e dos governadores dos estados”.

Na primeira semana, as ruas foram palco de intensos combates, com direito a fuzilaria, granadas e tiros de morteiros. Cerca de trezentas trincheiras e barricadas foram abertas em diversos pontos da capital.

A partir do dia 11, Carlos de Campos, o governador deposto, instalado nas colinas da Penha e seguindo determinações do presidente Arthur Bernardes, decide iniciar a carga de canhões em direção ao centro. O objetivo era apavorar a população e forçá-la a se insurgir contra os rebelados.

De forma intermitente, os bairros da Mooca, Belenzinho, Brás e Centro sofrem bombardeio diurno e noturno. Casas modestas e fábricas são reduzidas a escombros e cadáveres multiplicam-se pelas ruas. A fábrica de biscoitos Duchen, parte das indústrias Matarazzo, o cotonifício Crespi e o teatro Olympia, no Brás, vão ao chão. Uma granada explode no Liceu Coração de Jesus, próximo ao Palácio de Governo, nos Campos Elíseos, ferindo algumas crianças.

Um Breguet 14, com as insígnias francesas. Modelos como esse foram utilizados no bombardeio da capital paulista

CHUVA DE PAPEL

NO DIA 26, UMA NOVA INCURSÃO dos aviões assustou a população. Desta vez, não vieram bombas, mas uma chuva de panfletos, com a seguinte mensagem do ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho:

“Faço à nobre população de São Paulo apelo para que abandone a cidade. (…) Esta é uma dura necessidade que urge aceitar como imperiosa. (…) Espero que todos atendam a esse apelo para se pouparem aos efeitos das operações que dentro de poucos dias serão executadas”.

Com pouca munição, esgotados fisicamente e vislumbrando o fim de produtos de primeira necessidade para a população, os rebeldes perceberam ser inútil continuar.

Dos 700 mil habitantes da cidade, cerca de 200 mil fugiram para o interior, acotovelando-se nos trens que saiam da estação da Luz. Muitos vagaram por dias a pé, nas estradas e caminhos, tentando se distanciar do morticínio. Um campo de refugiados foi montado pela Cruz Vermelha, próximo a Santo André. O saldo dos 23 dias de revolta foi 503 mortos e 4.846 feridos. O número de desabrigados passou de vinte mil. Segundo relatório apresentado pelo prefeito Firmino Pinto, 1182 edificações destruídas, entre eles 103 estabelecimentos comerciais e industriais.

No final da noite do dia 28, cerca de 3,5 mil insurgentes retiraram-se da cidade com pesado armamento em três composições ferroviárias de até 16 vagões cada uma. O destino imediato era Bauru, no centro do estado.

Deixaram um manifesto, agradecendo o apoio da população: “No desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame, vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede governamental. (…) Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos transmitistes”.

Os combates não cessariam. No ano seguinte, a maior parte deles engrossaria a Coluna Prestes (1925-1927). Mais tarde, outros tantos protagonizariam – e venceriam – a Revolução de 30. São Paulo permanece até hoje como a única capital brasileira a sofrer bombardeio aéreo.

Cem anos depois, as lembranças dessas semanas dramáticas são rarefeitas. Há pouca comemorações e praticamente nenhuma iniciativa oficial em memória dos revoltosos. Há poucos e bons livros sobre o levante. Seguem algumas sugestões:

  • DUARTE PACHECO PEREIRA, 1924. O Diário Da Revolução. Os 23 Dias Abalaram São Paulo (Imprensa Oficial do Estado, 2010)
  • ELOAR GUAZZELLI, São Paulo em guerra – 1924 (Editora Unesp – Imprensa Oficial do Estado, 2013) – Quadrinhos
  • ILKA STERN COHEN, Bombas sobre São Paulo: A Revolução de 1924 (Editora Unesp, 2007)
  • JOÃO CABANAS, A coluna da morte (Editora Unesp, 2010)
  • JOÃO PAULO MARTINO, 1924 – São Paulo em Chamas (Excalibur, 2015)
  • MOACIR ASSUNÇÃO, São Paulo deve ser destruída: a história do bombardeio à capital na revolta de 1924 (Editora Record, 2015)
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