“Não podemos ratificar acordo com Mercosul porque não aprovamos política ambiental de Bolsonaro”, diz eurodeputada

Atualizado em 8 de outubro de 2020 às 18:28
A eurodeputada Marie-Pierre Vedrenne

A política de desmatamento do presidente Jair Bolsonaro motivou a eurodeputada francesa Marie-Pierre Vedrenne a propor uma emenda ao Parlamento Europeu se opondo à ratificação do atual acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul.

Centrista, membra do partido MoDem, Vedrenne não é oposta ao tratado de livre-comércio em si. Mas diante do que ela aponta como uma exigência de compromissos ambientais cada vez maior dos cidadãos franceses, a eurodeputada afirma que a questão ambiental
tem que ser uma prioridade em todos os campos de atuação do bloco. Mas o presidente brasileiro, segundo ela, não se enquadra nessa exigência.

Em entrevista para o Diário do Centro do Mundo, a parlamentar explica que os incêndios na Amazônia aumentaram a pressão dos cidadãos franceses contra o acordo de livre-comércio. “Não temos provas suficientes da parte do presidente Bolsonaro para lutar
contra o desmatamento e preservar a biodiversidade.”

Depois de obter voto favorável da maioria do Parlamento à emenda de sua co-autoria, Vedrenne critica a gestão ambiental do chefe de Estado brasileiro e indica os princípios que deverão guiar os próximos passos nas relações da União Europeia com o Mercosul.

DCM: A senhora é co-autora de uma emenda ao relatório do Parlamento Europeu relacionado à ratificação do acordo de livre-comércio negociado entre a Comissão Europeia e o Mercosul. Por quais razões a senhora se opõe a esse acordo?

Marie-Pierre: Penso que é necessário precisar o contexto desta emenda e por que eu defendo tal posição. Nós propusemos uma emenda a um relatório sobre a aplicação da política comercial. Por que eu propus essa emenda e por que obtivemos uma maioria no
Parlamento europeu?

Globalmente, o relatório tinha aspectos muito positivos, sobre a reciprocidade, o futuro da política comercial, mas para nós esse ponto particular do acordo com o Mercosul não era suficiente, seja para minha delegação, seja o governo francês ou outro Estado, a primeira-ministra alemã, cujo governo emitia dúvidas recentemente quanto a esse acordo. Por quê?

O senhor Bolsonaro nos diz que os engajamentos relativos ao Acordo de Paris não são um problema dele. Nós vemos que um relatório foi entregue ao governo francês. Através da assinatura do acordo União Europeia-Mercosul, o desmatamento vai aumentar e nós
teremos dificuldades de preservação da biodiversidade.

A União Europeia procura implantar um pacto verde. Nós votamos ontem a Lei Clima no Parlamento europeu. Então é preciso que nós sejamos coerentes. Temos exigências muito grandes no interior da União Europeia.

Sabemos que o combate contra o aquecimento global deve ser conduzido na cena internacional e é necessária uma coerência em todas as nossas políticas. E a política comercial deve exercer um papel. Então não podemos concluir um acordo comercial com certos Estados que nos dizem que essa prioridade não é essencial para eles.

Não podemos ratificar o acordo com o Mercosul na forma em que ele está, porque não temos provas suficientes da parte do presidente Bolsonaro para lutar contra o desmatamento e preservar a biodiversidade.

DCM: Segundo uma pesquisa de setembro, 76% dos franceses se opõem à ratificação do acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Qual é a visão dos franceses sobre a política ambiental de Jair Bolsonaro?

Marie-Pierre: De maneira global, os franceses são muito exigentes tanto em relação ao governo francês quanto ao presidente da República sobre as posições que nós devemos adotar na questão climática.

Há uma consciência muito grande sobre o fato de que é preciso preservar nosso planeta e que, justamente, é um combate que deve ser feito na França, mas também na Europa e na cena internacional.

Especificamente sobre o presidente brasileiro, quando vimos os incêndios na Amazônia, há necessariamente uma quantidade enorme de críticas, porque nós não vemos uma direção ser adotada para lutar contra o aquecimento global.

A questão para nós não é de dar lição de moral. Não é isso que buscam os franceses em relação a nenhum presidente, pois os franceses são críticos em relação ao seu próprio governo.

A questão é ter uma ambição mundial, e é assim que conseguiremos fazer com que os governos se engajem plenamente nessa vontade de responder aos nossos engajamentos no Acordo de Paris.

DCM: E qual é a sua posição individual sobre a política ambiental do presidente brasileiro?

Marie-Pierre: A emenda que nós propusemos não foi apoiada por inteiro pelo Parlamento europeu. Nós escrevemos claramente que não aprovamos a política ambiental de Bolsonaro porque ela está em contradição com os engajamentos assumidos no Acordo de Paris. Portanto temos grandes preocupações porque sabemos que a floresta amazônica exerce um papel considerável. Então é preciso que lutemos contra o desmatamento. Há muito o que fazer.

DCM: Ao mesmo tempo, Bolsonaro argumenta que os engajamentos assumidos no Acordo de Paris pertencem a outro governo, que não o dele. Esse argumento é aceitável?

Marie-Pierre: Esse argumento não se sustenta, não é válido. Vemos outros presidentes nessa lógica. Nos Estados Unidos, Donald Trump também se retirou do Acordo de Paris. Ele disse que se trata de uma ambição de Barack Obama e não a sua.

Esse argumento não se sustenta porque se houve um engajamento no passado e se conseguiu chegar ao Acordo de Paris é porque houve uma tomada de consciência internacional, uma consciência que é mobilizada pelo conjunto dos cidadãos.

Agora é necessária uma estratégia muito ambiciosa mas sobretudo internacional. Não chegaremos lá sem a ação dos agentes de todos os continentes.

Bolsonaro não pode dizer “eu não estou ligado à política do passado”. A política do passado tem consequências no presente e para o futuro e as políticas adotadas agora terão consequências no futuro.

DCM: Como a senhora vê o fato de que a Comissão Europeia tenha negociado este acordo no ano passado, quando o desmatamento já estava em alta e já tinha sido anunciado mesmo na campanha de Bolsonaro em 2018?

Marie-Pierre: O mandato de negociação da Comissão data de quase 20 anos. As negociações duraram 20 anos. Eu não vou falar em nome da Comissão Europeia. Ela tem o mandato e continua negociando para chegar a este acordo.

Cabe também aos Estados-membros, ao Conselho (europeu) de rever o mandato, porque o mundo de hoje mudou, justamente com a problemática do desmatamento mas também de outros temas.

Este mandato poderia ser revisto. Por isso destacamos o fato de que o acordo UE-Mercosul não pode ser ratificado como está.

É preciso ver quais são as lacunas e o que podemos agregar para demonstrar que lutaremos todos juntos contra o desmatamento e que conduziremos juntos políticas ambientais que respondam aos desafios que se apresentam diante de nós.

DCM: Antes de encontrar a ativista Greta Thunberg, a primeira-ministra alemã Angela Merkel dizia que não ratificar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul não era um bom meio de conter o desmatamento na Amazônia. Esse argumento lhe parece convincente?

Marie-Pierre: Alguns membros do Parlamento Europeu ressaltam que esse acordo possui um capítulo sobre o desenvolvimento sustentável e que nós poderíamos segui-lo, mas não o Mercosul e principalmente o Brasil.

É fato que há um capítulo sobre o desenvolvimento sustentável, mas o debate que temos hoje no Parlamento Europeu é como transformar esse capítulo em algo realmente eficaz porque um engajamento diante de um tratado é uma coisa mas se o parceiro não respeita esse engajamento, qual meio de ação tem a União Europeia para fazer com que ele seja respeitado?

No acordo tal qual ele está, não há suficientemente dispositivos que possamos ativar contra o aquecimento global.

DCM: A senhora se refere ao fato de que não há obrigação ambiental?

Marie-Pierre: Exatamente. O capítulo sobre o desenvolvimento sustentável não é suficientemente obrigatório.

DCM: Evoca-se frequentemente uma preocupação ambiental em diversos países europeus em relação a esse acordo, ao mesmo tempo que os agricultores da Europa temem uma concorrência desleal. Para além da questão ambiental, esse acordo de livre-comércio representa um problema econômico para os europeus?

Marie-Pierre: Há efetivamente a questão ambiental e a questão global de todos os nossos acordos de livre-comércio da concorrência leal. Essa concorrência deve ser feita do ponto de vista social, fiscal, das normas de produção e ambiental.

Há uma questão muito clara que se pergunta cada vez mais na Europa, colocada no CETA (Acordo de livre-comércio com os países da América do Norte) nos debates precedentes: os produtos que entram no mercado europeu significam respeitar nossas normas de produção.

Vemos agora que entramos numa outra lógica comercial. Antes a batalha comercial geralmente acontecia em torno dos impostos, das taxas aduaneiras. Agora nós estamos numa batalha de normas. Ao meu ver, é algo que será cada vez mais restritivo no futuro.

DCM: Uma não ratificação do acordo é suficiente como meio de pressão da Europa sobre a política de desmatamento de Jair Bolsonaro?

Marie-Pierre: É necessário muita clareza tanto em relação aos países do Mercosul quanto à União Europeia. Nós já comercializamos. Esse acordo visa a melhorar as relações comerciais e a institucionalizá-los mais. Temos essa ambição internacional de combater o
aquecimento global, a Covid-19, etc. Dizer “não” a Bolsonaro vai fazer com que ele esteja numa lógica de lutar contra o aquecimento global?

É ele quem deve demonstrar que dará passos nessa direção. É a vez dele.

DCM: Mas ele já demonstrou que não está disposto a mudar de política. Dito isso, a União Europeia deve adotar sanções contra o Brasil?

Marie-Pierre: Eu nunca estive na lógica da sanção. A primeira coisa a adotar é o diálogo, a cooperação, encontrar soluções comuns. É no que a União Europeia se engaja com o Brasil, mas também com os Estados Unidos, para citar um exemplo do conflito que nos
opõe no caso Airbus vs. Boeing perante a OMC (Organização Mundial do Comércio). A União Europeia sempre buscou encontrar soluções, é o que a caracteriza, é a sua essência, é o seu DNA.

Então, quando você se confronta a chefes de Estado e governos que não se enquadram nessa lógica será necessário também que a União Europeia se imponha.

DCM: Mas a UE conta adotar sanções contra a Bielorrussia…

Marie-Pierre: Sim, é uma situação bastante complicada nas nossas fronteiras.

DCM: Mas ao mesmo tempo, para a questão climática, a mesma postura não é cogitável do ponto de vista europeu?

Marie-Pierre: A dificuldade é: qual dispositivo jurídico utilizar, qual base de ação nós temos para avançar? A União Europeia defende um comércio baseado em regras. E há uma organização internacional a defendê-las, a OMC, que por sua vez também enfrenta dificuldade, mas que deve defender um comércio baseado em regras.

Quando há chefes de estado e governos que não estão nessa lógica, é preciso que nós tenhamos dispositivos que nos permitam de nos defender.