2015, o ano em que a Globo descobriu o racismo. Por Cidinha da Silva

Atualizado em 30 de dezembro de 2015 às 14:11

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A Rede Globo não descobriu o racismo em 2015, mas foi obrigada a confrontá-lo. Justamente por conhecê-lo bem, tratou de mascará-lo ao longo dos 50 anos de vida como empresa. Cuidou de oficializar a não existência do racismo no Brasil por meio de apologia à democracia racial, folclorização dos negros nos terrenos esportivo e cultural, acrescidos da discriminação racial explícita ao seguimento, principalmente em programas humorísticos, novelas e programação dos finais de semana.

Mas, por incrível que possa parecer, o que derrubou a Globo do cavalo foi a reação de grupos racistas, e também de indivíduos, à ascensão profissional da jornalista Maria Júlia Coutinho. A presença da repórter do tempo, como Maria Júlia ficou conhecida, no Jornal Nacional, espaço mais nobre da Globo, armou chuvas e trovoadas e os racistas saíram do armário.

Deram um tapa na pantera (a Globo). Grupos especializados em agredir personas negras nas redes sociais a atacaram. Segundo as investigações policiais preliminares e depoimentos dos acusados, as agressões e sua repercussão acumulam pontos, visibilidade e atestam a eficiência dos agressores em competições criminosas, cujo objetivo é desestabilizar pessoas negras famosas.

Movidos pelo mesmo objetivo, os grupos assolaram as atrizes Taís Araújo, Sheron Menezzes e Cris Vianna, valendo-se de semelhante léxico racista. Juliana Alves, outra atriz global, notifica que sofreu o violência igual, mas optou por enfrentá-la envolvendo-se em campanha educativa de combate ao racismo nos meios virtuais, idealizada pela ONG carioca Criola.

E agora Ali Kamell? Os ataques racistas à jornalista e às atrizes deixaram a Rede Globo de calças na mão, pois colocaram em cheque sua posição oficial de inexistência do racismo, expressa no livro “Não somos racistas” (Nova Fronteira, 2006), do diretor de jornalismo da empresa.

Choveria no solo molhado se afirmasse que a participação de pessoas negras como profissionais de destaque na Rede Globo, e de resto na televisão brasileira, é ínfima. Mais evidente seria se declarasse que os mesmos rostos negros, todos na área de jornalismo, aparecem com freqüência definida na telinha, ao longo das cinco décadas de vida da emissora.

Não me recordo de uma apresentadora negra de programa infantil, esportivo ou de variedades. Pensar em um protagonista negro no lugar de Luciano Huck, Fátima Bernardes, Xuxa (quando lá estava) ou Ana Maria Braga, deve soar como piada aos ouvidos de muitos leitores que devem professar o suposto mérito dos todo-poderosos do entretenimento.

A única lembrança de uma representante negra fora do jornalismo, que cada vez mais se configura como entretenimento também, vem da infância quando a cantora Alcione apresentava o programa de samba Alerta Geral (1978/1979).

As estrelas negras do jornalismo são ironicamente tratadas por revistas de celebridades como “os jornalistas negros mais queridos da Globo”. São, de fato, praticamente únicos. Além disso, não existe a lista dos “jornalistas brancos mais queridos”, só a relação dos parcos negros fora de lugar.

Glória Maria, veterana do grupo, é a mais visibilizada entre os “mais queridos negros”. Começou praticamente junto com a emissora, como estagiária, ainda na década de 1960. Abel Neto realiza competentes coberturas esportivas. Heraldo Pereira cobre folgas e férias de Bonner no Jornal Nacional.

Zileide Silva atua em grandes reportagens de teor político, tais como as eleições presidenciais e o cotidiano do Congresso Nacional. Tornou-se mais conhecida pela cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001. À época, a repórter era correspondente da Globo em Nova York. Ela, nos primeiros tempos, e Heraldo Pereira, ainda hoje, recebem maquiagem pesada que os empalidece. O racismo explica bem o porquê.

Quem tem TV a cabo e algum tempo livre durante a semana para acompanhar a gloriosa Flávia Oliveira nas tardes da Globo News, pode desfrutar de análise econômica simples e útil, acessível a quem é consumidor habitual de arroz, feijão, batatas e ovos fritos. Ainda no cardápio a jornalista especializada em economia oferece humor, ironia, assertividade e crítica de arte e cultura de primeira linha.

Se Flávia Oliveira comentasse os acontecimentos econômicos diários do Brasil e do mundo no Jornal da Globo, certamente traduziria o economês das variações do PIB, da oscilação das bolsas, do superávit primário, das commodities, para linguagem inteligível. Tudo isso faria mais sentido para as pessoas às quais a Globo quer convencer de que o aumento do salário mínimo é ruim. Compreenderíamos também como, na propalada crise, as pessoas de todas as classes socioeconômicas consomem tanto.

Maria Júlia Coutinho, depois de décadas sem renovação do time da TV Globo fechada, deu mais brilho ao seleto grupo. Em 50 anos de jornalismo global conseguimos formar uma seleção de titulares de futsal, sem banco de reservas.

A considerar o movimento ritmado da carruagem, o enfrentamento ao racismo, bem como outras pautas candentes de direitos humanos, se manterá distante da programação global. Esta é a lamentável, previsível e forçosa conclusão até para pessoas otimistas.