Em decisão inédita, indígenas vítimas de “chuva de agrotóxico” recebem R$ 150 mil de indenização. Por Pedro Grigori

Atualizado em 22 de janeiro de 2020 às 16:25
A comunidade indígena Tey Jusu

PUBLICADO NA AGÊNCIA PÚBLICA

POR PEDRO GRIGORI

Uma decisão inédita da Justiça Federal do Mato Grosso do Sul condenou um fazendeiro, um piloto agrícola e uma empresa a pagarem conjuntamente R$ 150 mil à comunidade indígena Tey Jusu, da etnia guarani kaiowá, localizada em Caarapó (MS), a 270 km ao sul de Campo Grande. Em 11 de abril de 2015, os indígenas receberam uma chuva de agrotóxico aplicada por um avião que pulverizava fungicida em uma plantação de milho. Crianças e adultos foram intoxicados, sofreram dores de cabeça e de garganta, diarreia e febre.

“Passaram de avião e não queriam nem saber, jogou em cima dos barraco, em cima da gente”, conta Naldo Damiel, de 55 anos, membro e porta-voz da comunidade Tey Jusu. A comunidade está na região desde 2014, com cerca de 70 pessoas em 27 casas. Apenas uma parcela do grupo fala português, a língua tradicional é o guarani.

“Eu e toda minha família estávamos junto na hora. O filho do meu cunhado passou mal, intoxicado com veneno, teve que levar pro hospital”, lembra Naldo. Os indígenas filmaram a pulverização e no vídeo, levado ao Ministério Público Federal, era possível ler o prefixo da aeronave, um código de identificação.

Em pouco mais de quatro anos na região, os indígenas da aldeia Tey Jusu construíram plantações de mandioca, milho, feijão, amendoim, batata doce e abóbora

A Terra Indígena Dourados-Amambai Peguá, onde fica a comunidade Tey Jusu, é cenário de confrontos em processos de demarcação de terra. Antes de ocupar a região onde estão hoje, os indígenas ficavam em outra comunidade guarani, a Te’yí kue, também localizada no município de Caarapó.

Na época da ocupação, a terra estava na posse de Francesco Nathan da Fonseca Canepelle, proprietário da lavouras de milho que ordenou a pulverização aérea. Em 2015, o agricultor ganhou uma ação de reintegração de posse na 1ª Vara Federal de Dourados, que foi suspensa por uma liminar do Tribunal Regional Federal da 3ª Região até que um estudo técnico de demarcação de terra fosse concluído.

Em 2016, o grupo de trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) concluiu o estudo antropológico e declarou a área como terra indígena. Mas o local segue sem a demarcação definitiva.

É esse o pano de fundo para a pulverização criminosa que atingiu os guarani kaiowá.

Agrotóxico vira arma em disputa de terra

“Historicamente, os agrotóxicos são utilizados como instrumentos para tornar a vida das comunidades que ocupam uma região o mais difícil possível”, conta o procurador do caso, Marco Antônio Delfino de Almeida, do MPF/MS.

O artigo 10 da Instrução Normativa n° 02, de 03 de janeiro de 2008, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, proíbe a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de 500 metros de povoações. Alguns barracos da comunidade estavam a apenas 30 ou 50 metros de distância da lavoura. Desta forma, a Justiça entendeu que os responsáveis assumiram o risco ao executar a aplicação de agrotóxicos.

E essa não foi a única pulverização sobre a comunidade. “Aconteceu duas vezes: em 2015 e depois mais uma vez em 2016. Depois que entregamos pro Marco Antônio (procurador) parou, só tá passando agora de trator”, conta Naldo.

Foram condenados o responsável pelo imóvel, Francesco Canepelle, a empresa C-Vale e o piloto responsável pela pulverização. A reportagem procurou a C-Vale, mas não conseguiu retorno até o momento. Francesco Canepelle não foi localizado.

A decisão da Justiça saiu em dezembro do ano passado, e a comunidade foi avisada da vitória na última semana, momentos antes da entrevista. “Vamos fazer uma reunião para contar para todo mundo”, diz o porta-voz. O dinheiro da indenização será revertido para programas de saúde e de educação para a comunidade.

O processo só teve início quase dois anos após a pulverização. Antes da ação ser proposta, o MPF fez investigação para identificar o piloto e a empresa aérea contratada. Foram coletadas duas amostras de solo da região da comunidade, onde se encontram cinco barracos próximos à lavoura de milho. As amostras foram enviados para análise química de resíduos de agrotóxicos.

O produto aplicado sobre a comunidade é o fungicida Nativo, da Bayer, composto pelos ingredientes ativos Tebuconazole e Trifloxistrobina. Ele é classificado pela Anvisa como Medianamente Tóxico e pelo Ibama como Muito Perigoso ao Meio Ambiente.

Em 2012, um estudo da Universidade Federal de Viçosa com o Tebuconazole constatou os efeitos do pesticida em morcegos: alterações metabólicas e hepáticas. Após serem expostos ao pesticida por sete dias, os pesquisadores constataram problemas no fígado, músculo peitoral, rins, intestino e testículos dos morcegos.

Naldo conta que agora tudo que a comunidade quer é ficar em paz nas terras que estão. “Até agora tá tranquilo. Estamos bem, plantando e cuidando daqui. Já temos plantação de mandioca, milho, feijão, amendoim, batata doce e abóbora. Tá ficando bom”.

Segundo os acusados, os indígenas teriam se afastado da aldeia, a mais de 500 metros da área de aplicação, para adentrar a lavoura de milho bem na hora da aplicação, o que teria resultado na intoxicação. O MPF contestou a versão dos réus, e por meio de laudos provou que as vítimas não estavam de passagem pelo local onde a aplicação ocorreu. “Havia barracos próximos à plantação que provava que eles viviam lá”, relata o procurador.

O MPF pediu indenização de R$ 50 mil por dano moral coletivo e pagamento de mais R$ 170 mil por dano material, para o acompanhamento semestral da saúde de todos os membros da comunidade indígena, e o monitoramento mensal da qualidade do solo e da água utilizada pela comunidade, durante o período de 10 anos.

Porém, a Justiça não acatou o pedido de dano moral, por entender que não foi delimitada a extensão dos danos relacionados à saúde, pois não foram feitos exames na época.

O magistrado condenou os réus apenas por dano moral coletivo “resultante de ofensa à coletividade indígena consubstanciada na exposição, de parcela de seu grupo, à substância imprópria à saúde humana”.

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“A dignidade humana é por excelência o bem jurídico supremo. E, para sua proteção, impõe-se o dever jurídico de todos e do próprio Estado em respeitar a dignidade do próximo, seja o próximo um negro, um branco, um índio ou pertencente a qualquer outra raça ou etnia”, diz a decisão, que definiu a indenização no valor de R$ 150 mil.

O procurador conta que, em casos como esse, não é preciso provar que as vítimas foram intoxicadas ou o que elas sofreram. É classificado como crime apenas por ter ocorrido a pulverização. “Não é necessário indício de contaminação. A partir do momento em que a pessoa passa por cima de uma comunidade é crime. Toda e qualquer falha administrativa no processo é caracterizada como crime.

A pessoa pulverizou fora das especificações legais, é crime”, explica.O triunfo dos indígenas da comunidade Tey Jusu ocorre em um cenário de diversas vitórias dos agricultores do Mato Grosso do Sul. Um caso recente e semelhante de pulverização irregular de agrotóxicos ocorreu com os guarani kaiowá comunidade indígena de Guyra Kambi’y, em Dourados (MS). Mesmo com um vídeo gravado que mostra o avião jogando pesticida próximo à comunidade, a Justiça considerou a acusação improcedente.

Em outro caso, o acusado confessou durante a audiência em 2018 ter pulverizado agrotóxico em cima de índios guarani kaiowá no município de Dourados. Mas acabou absolvido devido a um relatório do Ministério da Agricultura, que apontava que não teria indícios de contaminação.

“O mesmo Ministério que tem como um dos princípios institucionais a promoção do agronegócio é quem faz a fiscalização dos agrotóxicos. Há um claro confronto de interesses, o que faz com que a fiscalização seja extremamente limitada em relação aos agrotóxicos”, afirma o procurador.