O relato de uma jornalista da BBC sobre a longa espera em Caracas.

A jornalista Eulimar Núñez, da BBC, entrou na já histórica fila das pessoas empenhadas em homenagear Chávez, em Caracas. Seu relato, publicado na BBC Mundo, mostra como milhões de venezuelanos viam Chávez.
A primeira vez que passei por perto da Academia Militar, na quarta-feira pela manhã, o cortejo fúnebre ainda não se iniciara, e já havia centenas de pessoas espremidas ali à espera de homenagear o presidente.
Na noite daquela quarta-feira, a fila de pessoas vestidas com camisas vermelhas e calças jeans que esperavam para ver os restos de Chávez já se estendia por quilômetros ao redor da Academia Militar, onde ele seria depois velado.
Por uma porta lateral da academia entravam os oficiais superiores do exército, junto com suas famílias, e os líderes do partido. Era um tipo de acesso VIP, sem apertos, sem calor e sem desidratação.
Na multidão, os partidários de Chávez tinham que enfrentar, em média, 14 horas na fila para vê-lo no caixão. “Eu andei e andei e ainda não sei onde começa a fila”, queixou-se José Manuel Ortega, 35 anos, funcionário público. Ele chegou a Caracas às 6h30 de quinta-feira, depois de seis horas de viagem de ônibus, vindo de Barcelona, no estado Anzoátegui.
Os olhos de Ortega estavam umedecidos e sua voz quebrada quando ele disse: “Chávez morreu. Vou sentir falta dele. Não estou aqui para dizer adeus, mas até logo. Não tenho palavras para descrever este grande homem que fisicamente se foi, mas que está aqui em nossas mentes e corações.” Ortega bateu então no peito .
Misturada entre o povo, na quinta de manhã consegui chegar à fila, que por vezes era lenta e, por vezes, ganhava velocidade.
O presidente morrera fazia dois dias e vendedores já ofereciam todos os tipos de coisa. Um postal de Chávez em uniforme saía por 50 bolívares (cerca de 16 reais). Uma pequena bandeira da Venezuela para ser agitada com as mãos custava o dobro.
“Ele morreu e soprou uma brisa fresca”, disse, atrás de mim, Manuel Perez, 32 anos, professor de história e geografia de um colégio em San Antonio de Los Altos, cidade satélite de Caracas. “Vim para ver o meu comandante. Estou triste, muito triste. Maduro tem que ganhar, e se não ganhar é porque não aprendemos nada.”

Como a espera é longa, lendas urbanas e histórias relacionadas com a morte do presidente se multiplicam. Perto de mim, Aurora Rodriguez, uma secretária de 45 anos que mora em Caracas, disse em voz alta: “Vocês não perceberam que quando ele morreu fez sol e chuva, e começou a soprar uma brisa fresca, com as aves voando por toda parte? Impressionante. Quando chegar em casa vou acender uma vela para o meu comandante”.
São 11 da manhã, e o sol é implacável. As pessoas à minha volta dizem que estão tristes, mas não param de cantar. As frases mais utilizadas são “Chávez vive, a luta continua” e “Chávez não morreu porque Chávez sou eu”.
De repente, ouço um “corra” e apresso-me. Os idosos e as crianças estão atrasando a caminhada. Todo mundo sabe que quando se abre na fila um espaço longo, outros vão aproveitar a negligência e tomar a frente.
As pessoas vêm de todas as partes da Venezuela para prestar suas últimas homenagens. “Revolucionário não fura fila”, grita, suada, Olga Mendoza, dona de casa que tenta organizar as coisas. “Temos que ser disciplinados, como nos ensinou o presidente. Ele nos deu a vida e não podemos permitir que as pessoas furem a fila e prejudiquem um momento sublime como este. Mesmo que leve horas, quem ama o seu presidente e seu país faz isso e muito mais.”
Quando retorna a calma, ela me conta que antes de 1998 jamais recebera um empréstimo. Com Chávez no poder, conseguiu. “Agora estou esperando uma casa. Não saio daqui sem vê-lo. Nos seus comícios eu ia doente, com febre, dor de coluna, e sempre ficava até o final.”
Pouco depois, o professor Perez me diz, baixinho, que jamais recebeu um centavo. “O que ele fez foi ajudar os pobres. Nunca votei nele para ganhar qualquer coisa. Em 14 anos não recebi um bolívar, nem quis nada. Nem casa, nem carro, nem empréstimo. Votava em Chávez porque acreditava nele. Se eu tiver que ficar a noite toda para vê-lo, vou ficar.”

“Eu gostaria que houvesse mais organização, mas o que fazer, é um monte de gente”, diz uma pessoa a meu lado quando a fila se torna tão grossa que dez pessoas ficam juntas ombro a ombro.
Na rua onde a cada feriado nacional são realizadas marchas militares, marcham agora simpatizantes de Chávez, vindos de todos os cantos do país, como mostram as faixas. “Upata com Chávez sempre”, “Táchira chora sua morte”, “Viemos de Cumanacoa e estamos desesperados para ver nosso líder”.
Vejo enfim a primeira leva de banheiros portáteis, todos com filas longas. A maré humana está agora dividida em quatro grupos principais.
“Lá na frente, na Academia Militar, tem muita gente”, diz alguém. “São muitas filas: uma para militares e autoridades, outra para líderes internacionais, e incontáveis filas para o povo, que depois terminam num funil estreito. Para ver o presidente a espera é de dez a 12 horas.”
Às duas da tarde, encontro o único homem que diz ter visto Chávez. Ele saiu de Cumanacoa, no estado de Sucre, às três da manhã. A multidão, o calor e a longa espera provocam desmaios entre mulheres e crianças.
“O amor por meu comandante me ajudou a entrar”, diz o homem. “Fiquei muito triste ao vê-lo ali, sem vida, mas agora cada um de nós aqui somos Chávez. No caixão ele estava firme, ousado, com a coragem que o caracterizava, vestido como ele queria, com sua boina vermelha militar. É uma cena que vou levar por toda a minha vida. ”
Quando finalmente me aproximo da entrada da Academia Militar, um guarda pergunta se estou sozinha. Digo que sim. “Esta é a única fila que leva ao corpo do comandante. Vou deixar você passar.”
Caio então num aglomerado de senhoras, e muitas desmaiam. O calor é insuportável. Meia hora depois, sem muito ar, desisto.
Às quatro da tarde, o fluxo de pessoas continua. Elas não vão sair até ver Chávez. Os alto-falantes anunciam crianças perdidas. “Vamos seguir adiante, joelhos nos chão, como nos ensinou nosso comandante”, ouço uma mulher dizer antes de entrar no veículo que me levaria embora quando, depois de um longo caminho, eu estava tão perto do caixão de Chávez.