4 poesias e uma frase do “apanhador de desperdícios” Manoel de Barros

Atualizado em 14 de novembro de 2014 às 23:05

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Eu soube da morte de Manoel de Barros ontem de uma forma diferente. A trabalho em Brasília, com menos tempo do que afazeres, não pude ler as notícias da manhã. Saí correndo e fui fazer minhas coisas.

Às 13h30, teria um encontro breve com Eduardo Suplicy, que me falaria sobre suas impressões acerca da regulação da mídia. Houve um desencontro, de forma que tive que procura-lo no plenário e ser ainda mais breve.

Ao adentrar a meia-lua virada para baixo, vi Suplicy falando emocionado. Falava da morte de Manoel de Barros. Não ficou apenas com a voz embargada – chorou de fato ao ler a seguinte poesia:

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Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Ao saber da morte de Manoel de Barros, me lembrei imediatamente de uma amiga, Juliana Massoni. Escritora, grande fã de poesia e poeta discreta quando não escondida, nós temos como poetas preferidos dois Manoéis distintos. O meu é Bandeira. O dela, de Barros.

Liguei para ela para dar minhas condolências. Ela, como Suplicy, não o conheciam pessoalmente (eu perguntei ao senador ao ver sua emoção, que me disse ser apenas fã). Mas herói, ídolo, mestre, ou coisa que o valha, muitas vezes se fazem conhecer profundamente através da obra – não é necessário vê-los de perto para saber ao menos boa parte do que são.

Juliana me indicou três obras para o deleite do leitor do DCM:

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O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

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Muito Prazer
Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.

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Uma didática da invenção
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X
Não tem altura o silêncio das pedras.

Quanto a mim, tenho alguma dificuldade em relação à obra do poeta. Não me entenda mal: admiro e muito. Apenas ele, mais ou menos como Saramago, não têm o meu ritmo natural. Meu gosto por poesia vem da música, e o ritmo é absoluto. Não é fácil para mim seguir o ritmo relativo do Manoel de Barros.

Isso não diminui minha admiração pela capacidade, única talvez, de ver e descrever o mundo sob o olhar preciso de uma criança, com capacidade analítica de um grande filósofo. Por isso a minha indicação não é de uma poesia, mas de uma frase, uma passagem da maravilhosa “O Apanhador de Desperdícios”. Esta frase vale, para mim, por mil poesias:

Uso as palavras para compor meus silêncios.

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