Clapton é Deus

Atualizado em 18 de maio de 2011 às 19:22
No show de Clapton ontem no Albert Hall

Do Royal Albert Hall

Clapton está sentado num banquinho, com um violão. Veste uma camisa preta de mangas curtas em cima de uma calça de jeans. O sapato, um mocassim marrom, é simples e confortável como um tênis. Antes do espetáculo – da gig, guigue, como os ingleses falam — foi colocado um tapete colorido como uma mandala em cima do lugar que ele iria ocupar no palco. O cabelo é o de um adolescente, na quantidade e no penteado meio esculhambado. Tanto cabelo assim, penso, meio desconfiado, e com um pouco de inveja, é natural? Clapton está no meio dos 60. Mesmo mulheres dessa idade já não têm a exuberância capilar da juventude.

O que é inegável é a jovialidade, a vitalidade adolescente dele. Isso implanta nenhum compraria, e fica demonstrado na forma com que ele se movimenta pelo palco, e nos sorrisos que distribui para a banda. Dois tecladistas, o baterista, o baixista e mais duas cantoras de apoio. Um dos tecladistas, cabelos claros e compridos como eram os de Sérgio Hinds do Terço no começo dos anos 70, arranca duas vezes aplausos entusiasmados da platéia em solos. O outro tenta responder, mas não consegue.

Bem, eu estou na multidão que foi ontem ao Royal Albert Hall, em Londres, para ver Clapton. É parte de uma turnê mundial que passará pelo Brasil. Se você puder, vá. Economize na pipoca, nos restaurantes, nos gadjets, nas plásticas e veja Clapton.

Noto que estou com o mesmo sorriso que faço para minha caçula quando a vejo. É fácil reparar nas minhas fotos quais são as tiradas por Camila pelo sorriso. Só ela arranca de mim um sorriso tão, tão francamente apaixonado.

Estou tecnicamente emocionado. Ver Clapton em Londres é uma dádiva que a vida me proporcionou. Ouvi tanto, ao longo dos meus 55 anos, que parece que estou vendo ali um velho amigo.  Não seria estranho, penso numa fantasia, se saíssemos os dois de lá depois do show para tomarmos uma cerveja num pub.

O repertório  foi muito bem escolhido. Clapton pegou grandes músicas de sua carreira, de Cocaine a I Shot The Sheriff, de Old Love a Nobody Knows You When You’re Down and Out, de Crossroads a Layla, e acrescentou uma ou outra novidade ao longo de duas horas. Fora, é claro, a dose de blues necessária para um bluesman fanático como Clapton ficar feliz e solar demoradamente.

A novidade que me pega mais é um tributo a Gary Moore, o guitarrista irlandês recentemente morto: I Still Got The Blues. É uma daquelas músicas que, como While My Guitar Gently Weeps, de George Harrison, todo guitarrista gostaria de ter escrito. O solo de guitarra, simples, pungente, domina a música.  Mas a letra, mesmo sendo secundária,  tem seu papel. É triste como uma despedida entre duas pessoas que se amaram. Gosto do trecho da letra que diz que o amor é um jogo que você mesmo jogando para ganhar acaba perdendo.

Claptou deu a ela seu toque, assim como fizera, décadas atrás, com Little Wing, de Hendrix. A guitarra com Clapton, curiosamente, passa a ser menos importante. São os teclados que exercem, aí, o domínio. Nesta canção, Clapton está com o violão, como em seu consagrado concerto acústico da MTV. Há uma sabedoria nisso, penso. Não há nada que Clapton possa fazer, na guitarra, para melhorar o solo avassalador de Moore, um dos maiores (e mais subestimados) da história do rock.

So long, it was so long ago

But I still got the blues for you.

Me pergunto se Clapton pensa em alguém especificamente ao tocar essa música. Carla Bruni? Clapton namorou-a quando ela era bem jovem. Ele a apresentou um dia a Mick Jagger com palavras absolutamente desastradas. “Essa não, hem, Jagger. Estou apaixonado.” Claro que Jagger pegou Carla. Não que Clapton pudesse se queixar muito. Anos antes, ele pegara Patty, a mulher de George Harrison, seu grande amigo, a musa de Layla e – suspeita-se, sem comprovação – de Something. George também não era exatamente monogâmico. Num momento, ele ficou muito mais interessando sexualmente em Paula, a cunhada, do que em Patty.

Admiro a simplicidade do que vejo no Albert Hall. Quem está lá gosta de Clapton e de música, não necessariamente de circo. As luzes são bonitas, mas simples. Não há efeitos especiais.

Clapton parece um menino também no humor. Em Badge, um clássico que ele escreveu com Harrison, ele prega uma peça em nós. Quando vai fazer o solo de guitarra, a apoteose que todos na platéia aguardamos, ele dá um breque. Brinca com a distorção, e você imagina que virá um som daqueles épicos do guitar hero dos anos 60 e 70. As respirações estão suspensas. Ele dá uns  passos, mexe no pedal, e o que vem é um som delicado na guitarra, um miado em vez de um rugido. Ele dá esse trote na plateia duas vezes em Badge, com sua guitarra azul clara. Caímos na primeira e, obtusos, também na segunda.

Percebo, no final, que passei quase todo o show com aquele sorriso genuíno de que falei, em completa e bem-vinda solidão, irmanado no entanto pelo espaço de duas horas àquela família heterogênea de claptomaníacos. Vejo um senhor da idade de Clapton e um garotão de uns 17 anos dançarem do mesmo jeito, e ali está representada a durabilidade da música de Clapton.

É bom estar em Londres, e eu agradeço  por alguns momentos com sinceridade total os canalhas que ao me apunhalar pelas costas me abriram, involuntariamente, o caminho para uma cidade mítica para mim e as pessoas de minha geração, a nossa Jerusalém, a nossa Xangrilá, sagrada, profana, invicta — e gloriosamente eterna em nossos sonhos.

A lenda de Clapton foi construída em cima de uma pichação nos anos 60 em Londres: “Clapton é Deus”. Foi o talento notável com seu instrumento e a aura de guitarrista imbatível que o fizeram conseguir uma carreira solo de enorme sucesso a despeito das óbvias limitações de sua voz e de sua capacidade como compositor.

Ao longo do show, mesmo um ateu irrecuperável como eu concorda que ali diante de nós, de jeans, absolutamente informal e leve como um adolescente já quase aos 70, e muito sexy com seus óculos de míope, está Deus.