60 anos do golpe: é possível se afogar no rubicão sem cruzá-lo. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 20 de março de 2024 às 14:14
O presidente Lula em solenidade sobre o Dia do Exército. Foto: Ricardo Stuckert

A recusa em permitir que seu governo realize atos pró-democracia e de denúncia de violações de direitos humanos no transcurso dos 60 anos do golpe de 1964 pode marcar de forma indelével a biografia do presidente Lula.

Até aqui, existe entre sua base social mais próxima – trabalhadores organizados, funcionários públicos, intelectuais e ativistas, dentre outros – certa condescendência com os resultados de 15 meses de mandato. É aquela coisa de “Há problemas na Educação, mas a situação é melhor que nos tempos de Bolsonaro”, ou “a Economia não vai tão bem, mas compare com Paulo Guedes” etc. Ou seja, usa-se uma comparação extremamente negativa para justificar a mediocridade presente. “Lula está se esforçando”, “ Veja o buraco que ele recebeu” e por aí vai.

O recuo em relação à ditadura pode mudar tudo. Evidencia não uma determinada leitura da História, mas injustificável pânico diante da casta militar. Concretiza uma capitulação e o desrespeito não apenas às famílias de mortos e desaparecidos, mas a todo aquele que julga a democracia um princípio inegociável.

Depois disso, Lula poderá elevar o Bolsa-família, anunciar um novo Minha Casa Minha Vida, xingar Bolsonaro e muito mais. A mancha dificilmente sairá. O injustificável recuo revelado no comportamento de quem nunca se pautou pelo medo na vida pública – lembremos de sua prisão – tira de cena atos positivos sem conta. A covardia é atitude inesquecível e sempre demandará explicações e gerará justificativas que começam com o inevitável “Veja bem…”.

Lula ao lado de Tomas Paiva, comandante do Exército, e José Múcio, ministro da Defesa. Foto: Ricardo Stuckert

A capitulação ante a malta fardada – que desde a República se caracterizou pela truculência, por ver o povo como inimigo e por seu desapego a qualquer noção de brasilidade – é cristalina e compreensível por qualquer um. Aos 78 anos de uma vida admirável e venturosa, o passo atrás – sem nenhum adiante nessa seara – ficará como característica destacada desse líder admirável. E pior: obscurece avaliações positivas de suas gestões.

A acelerada mediocrização e percepção da falta de rumos do governo aparecerá por inteiro. Eleito numa campanha memorável e tendo inflingido à extrema-direita nacional (e global) pesada derrota, a gestão real mostra-se sem rumos e a mercê de todo tipo de pressão feita por grupos poderosos.

O Ministério da Fazenda é o posto avançado da Faria Lima na Esplanada. Com um apertado teto de gastos, construído em parceria com o financismo, a iniciativa atua como torniquete do orçamento público. A Secretaria de Comunicação foi transformada em guichê pagador da Rede Globo, tornando letra morta a luta pela democratização das comunicações.

Se parecia impossível não ceder às pressões do centrão no Congresso, é quase inacreditável que seu chefe, Arthur Lira, tenha se tornado virtual primeiro-ministro governamental, sem nenhuma reação contrária.

Isso tudo poderia ser mais ou menos explicado e justificado com base no eterno mantra da “correlação de forças”. Mas a rendição sem luta ou sem denúncia pública diante de corporações desgastadas e colocadas a nu diante da opinião pública, não. Essa é do entendimento de todos.

Pode ser que a constatação seja inicialmente restrita a parcela pequena da população. Mas é esse contingente que vai às ruas, que faz campanha e que apresenta algum poder de multiplicar opiniões.

Lula pode não estar cruzando um Rubicão, mas entrando numa fatal barca furada. Pois também é possível se afogar nesse pequeno curso d’água da província Forli-Cesena sem atravessá-lo.

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Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSOL ao governo de São Paulo, em 2014