7 perguntas para Camila Márdila, de Que Horas Ela Volta? Por Nathalí Macedo

Atualizado em 24 de novembro de 2015 às 18:15
Camila
Camila

Entrevistamos Camila Márdila, do filme Que Horas Ela Volta?

1. Há quanto tempo você atua e como começou?

Eu comecei a fazer teatro com sete, oito anos de idade. Sempre fiz oficinas livres, quando eu era criança não queria entrar em escolas de teatro infantis, eu não me adaptava. Então eu pedia pra fazer aulas de teatro com pessoas mais velhas, e aí quando cheguei aos onze, doze anos começaram a me deixar fazer, eu era uma espécie de mascote das turmas.

Havia umas oficinas que aconteciam na Faculdade Dulcina de Moraes, em Brasília, e minha mãe me levava pra fazer aula lá. Era um trabalhão, as aulas eram à noite e nós morávamos em cidade satélite. Minha mãe me levava e ficava me esperando no carro. Então, ainda que ela não entendesse por que eu queria fazer isso, me ajudava e me acompanhava muito.

Ela e meu pai sempre foram incríveis no apoio. Já mais velha, na época da faculdade, eu não queria fazer Artes Cênicas na UNB. Eu queria sair de Brasília mas ainda não me sentia muito preparada para morar fora da casa dos meus pais, e acabei achando que fazer Comunicação seria legal. Tem ali a publicidade, o jornalismo, o cinema, tudo junto…

Fiz comunicação na UNB, mas sempre levando essa vida paralela. Durante a faculdade conheci os irmãos Guimarães, dois diretores de cinema lá de Brasília, que fazem muitos trabalhos em São Paulo e Rio de Janeiro e começaram a me chamar pra trabalhar de verdade – até então eu só fazia oficinas.

Eu entrei para o grupo de estudos deles e a gente começou a fazer peças, viajar… Eu ainda estagiava e estudava Publicidade, então comecei a ficar dividida e com a ideia de juntar um dinheiro, me organizar para sair de Brasília quando terminasse a faculdade, porque eu queria ter alguma experiência em outro lugar, já que sempre morei em Brasília. Finalmente fui para o Rio de Janeiro, deixei a publicidade de vez e passei a trabalhar só como atriz.”

2. Como surgiu o convite da Anna Muylaert para o Que horas ela volta? É a sua primeira experiência no cinema?

Já no Rio de Janeiro, me convidaram para fazer um teste para um filme que seria rodado em Brasília, Do outro lado do Paraíso, com direção do André Ristum. A produtora lembrava de mim de um outro teste que eu tinha feito três anos antes. Eu acabei aceitando fazer o teste. Inicialmente não rolou, a personagem era muito mais nova, mas depois de um tempo eles acabaram me chamando.

Então foi esse foi o primeiro longa que eu fiz. Ele falava do golpe de 64, da construção de Brasília, e a cidade cenográfica era Taguatinga, a minha cidade natal. Foi um filme muito gostoso de fazer – muito aprendizado, uma equipe incrível, foi a oportunidade que eu tive de ficar em um set de longa – que era uma experiência que eu ainda não tinha – observando, absorvendo, aprendendo mesmo.

Foi aí que a produtora de elenco Patrícia Faria foi me assistir no teatro. Era uma peça dos irmãos Guimarães chamada Nada – Uma peça para Manoel de Barros. Ela estava produzindo o filme da Ana [Muylaert] e começou a cogitar me chamar pra fazer o filme [Que Horas Ela Volta?]. A princípio ela não comentava comigo por que o perfil da personagem era totalmente diferente do meu: mulata, pernambucana.

Mas ela começou a comparar umas fotos minhas e da Regina [Casé] e perceber que a gente tinha alguma semelhança. Depois que me viu atuar no teatro, achou que eu conseguiria dar conta desse peso da personagem Jéssica. Ela começou a insistir com a Ana – que a princípio não queria assistir meu teste porque não era o que ela estava procurando.

Eu viajei pra São Paulo pra fazer o teste e foi incrível. Foi um teste de improviso – que eu gosto muito de fazer – e eu fiquei feliz porque a Ana estava presente e era uma oportunidade de conhecê-la, no mínimo, e eu já era muito fã dela. Demorou para que a Ana e a equipe me aceitassem porque eu fugia muito dos padrões que eles procuravam. Mas nós acabamos tendo uma ideia de Jéssica muito semelhante sem precisar nem conversar, então isso foi uma coisa que contou muito. O Que Horas Ela Volta?, foi, então, o meu segundo longa.

Com a diretora Anna Muylaert, no Sundance
Com a diretora Anna Muylaert, no Sundance

3. O filme foi um sucesso de bilheteria e pré-indicado ao Oscar. Você imaginava que o trabalho fosse tomar tais proporções? Qual foi a importância desse trabalho para a sua carreira? Mudou muita coisa até agora?

Foi o primeiro longa de uma personagem que é a Jéssica, que realmente é um divisor de águas, tanto profissionalmente quanto pessoalmente, porque tudo o que foi acontecendo com o filme, desde dar super certo lá fora, até estrear aqui… Claro que meu trabalho foi sendo reconhecido e tem convites, possibilidades, e eu vejo um espaço muito maior pra eu conseguir atuar.

Você passa a fazer parte de um grupo, já que eu não tinha tido a oportunidade de fazer um filme que me possibilitasse conhecer pessoas, e mostrar o meu trabalho e com a importância que tem a Jéssica. O tanto de discussões que esse filme gerou… Eu e a Ana ficamos muito à frente desse movimento.

É um filme que no último ano tem sido uma transformação e um amadurecimento absurdo de nós duas, porque a gente tem que bancar esse discurso também – é uma coisa nossa, em comum, uma coisa que a gente acredita. A gente está muito feliz e muito satisfeita que o filme tenha sido maior o sucesso apenas pelo glamour. É um filme de sucesso pelo que ele representa, e principalmente porque as pessoas tomaram ele para si, as pessoas são donas desse filme, daquelas personagens, e elas existem no mundo agora.”

4. Como foi o processo de construção da sua personagem?

A Jéssica foi uma coxa de retalhos. Em geral, eu costumo ter processos muito particulares pra cada personagem, pra cada trabalho. Não tem um caminho específico que eu tendo a traçar. Mas ela é o que intuitivamente e também nos ensaios, nas conversas, vai me surgindo de coisas para eu ir atrás. As vezes é uma música que inspira…

Eu, por exemplo, ouvia muito Karina Buhr, não só pela coisa do sotaque, mas porque já era uma coisa que eu escutava muito – pena que na época ainda não existia o álbum “Selvática”, porque eu acho que teria sido ainda mais incrível ainda a construção – mas a energia, o sotaque, o ritmo, a cadência, o que ela traz, essa coisa feminina… Tudo acabou me influenciando bastante.

Eu sou muito observadora, gosto muito de andar na rua meio sem rumo, observando as pessoas, encontrar as possíveis Jéssicas em gestos, em um comentário, em uma presença que me inspira.

Gosto de assistir as pessoas no cotidiano, e isso me ajudou a construir a personagem. E também tenho algumas amigas que me inspiraram, pessoas que eu convivi durante a UNB. Na época já existia a política de cotas, e eu vi durante toda a faculdade, a transformação da ocupação desse espaço, e de como ele se modifica com a presença dessas pessoas. Então eu convivi com muitas Jéssicas na UNB, inclusive mais Jéssicas do que a própria Jéssica. E isso foi uma inspiração também.

5. O filme aborda questões sociais importantes e bastante contemporâneas. Você acha possível traçar um paralelo entre a história desses personagens e a realidade brasileira de injustiça social?

A questão do abismo social e do problema do classismo é uma intenção inicial da Ana e o que eu acho mais incrível no filme é como isso não se torna apenas um discurso. Isso está na construção das cenas, na construção do espaço, na direção de arte, na maneira como os corpos se relacionam, como ocupam aquele espaço, na arquitetura…

Então é muito diluído ali no filme e ao mesmo tempo é uma diluição que impregna tudo, então é um filme que realmente gera uma identificação imediata. Eu acho que o sucesso dele se deve muito a isso: ele é acessível a todo mundo. É uma coisa que a Ana queria desde o início: que crianças, idosos, Vals, Bárbaras, todo mundo entendesse o filme.

É claro que as interpretações vêm de lados completamente opostos, que é outra riqueza do filme. Muitos lados estão representados, ou uma pessoa se sente representada em todos os personagens, porque a gente é um pouquinho daquilo em vários momentos da nossa vida, então o filme pega a nossa história, o nosso presente, a nossa questão social, mas não transforma num discurso. É um microcosmos daquela casa, é aquilo sendo falado o tempo todo sem precisar exatamente ser didatizado.”

Com Regina Casé, no filme
Com Regina Casé, no filme
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6. Jéssica é justamente um contraponto dessa realidade de desigualdade e injustiça social retratada no filme, talvez o retrato do inconformismo. Você se identifica de alguma maneira com a personagem?

Eu queria ser mais Jéssica do que eu sou. Depois que eu fiz a Jéssica eu percebi que não sou tanto assim. Mas minha mãe, por exemplo, quando assistiu disse: ‘Você não deve ter precisado ensaiar nada, porque você está toda ali.’ Ela tem essa perspectiva porque eu me sinto um tanto Jéssica em relação aos meus pais.

Eu escolhi uma profissão que pra eles não faz o menor sentido, eles nunca tiveram ideia de como isso poderia ser feito, porque eles vêm de um interior, só conseguiram estudar depois de adultos, ninguém na família é artista ou algo próximo disso. Eu sempre fiz escolhas muito esquisitas pra eles e eles nunca souberam como poderiam me ajudar, ficavam meio desesperados e achando que eu era uma louca.

Hoje em dia eles vêem que é possível. Eles foram conhecendo outro universo, entendendo que o mundo é maior, que as possibilidades são outras, e eu acho que nesse sentido eu sou e fui muito Jéssica. Eu tenho esse papel de ter que levar pra a frente, de sacudir o lugar, de abrir os horizontes.”

7. O filme um inegável peso feminista. Qual a importância disso neste momento tão crucial de levante das mulheres no Brasil?

Eu acredito que realmente a Ana começou esse roteiro com a clara intensão de falar sobre o abismo social que a gente vive, concentrado na figura da babá, na questão da maternidade, e acabou por ser um filme muito feminino, no sentido de ter aquelas três personagens: a questão da mulher como centralizadora de um histórico e da mudança.

Tem a Val que tem um histórico escravocrata, a mama de leite, a mulher que cuida da casa, enfim. E também tem a figura da Bárbara, que é essa mulher que numa determinada geração decide que precisa trabalhar, e vai ali metendo o pé na porta porque quer ser do universo masculino.

Ela representa essa mulher que deseja o poder, e eu acho que ela peca justamente por querer o espaço masculino, mas que é totalmente plausível e coerente com o que a gente vê ou vive, de a mulher ter que se impor no mercado de trabalho, as vezes tendo que ser até muito mais agressiva do que gostaria ou deveria porque tem que se afirmar o tempo todo e isso é muito confuso.

Eu gosto muito de uma coisa que a Ana fala quando vai apresentar o filme. Ela fala que ele é sobre três mulheres: uma mulher que se acha superior às outras pessoas por uma série de motivos, uma mulher que se acha inferior às outras pessoas por outra série de motivos e uma mulher que não se acha nem melhor nem pior do que ninguém, e essa é a utopia do filme.

E eu acho que isso tem muito a ver com a questão do feminismo, com o que nós estamos vivendo agora, sobre você querer ocupar os mesmos espaços, querer uma igualdade, acreditar que você não é melhor mas que também não é pior. São essas três mulheres muito fortes, independente dos seus erros, que carregam o mundo nas costas.

Paralelo a isso, há dois personagens homens totalmente perdidos, pairando ali, totalmente dependentes delas. Isso tem muito a ver com esse momento que a gente vive, em que os homens estejam talvez vivendo um colapso de nem saber onde se enfiar, eles tentam manter determinada postura – como o Doutor Carlos, o Lourenço (maravilhoso!) – que fala numa cena: ‘todos dançam, mas sou eu quem ponho a música.’

É patético, tenta-se manter essa imagem mas ao mesmo tempo ele não sabe onde se meter, está num buraco sem fundo. Tem aquela reação ridícula com a presença da Jéssica – muito sintomático de quem parece estar se afogando e vê nela uma salvação. Essa coisa de achar que é a mulher que o salvará, que o fará feliz de novo, porque ela tem essa energia pra frente. A Val, apesar de tudo, também tem essa energia.

A dona Bárbara também, é quem trabalha, quem toma as decisões. Eu acho que as mulheres ali são muito fortes exatamente porque são o acúmulo de muitas funções: todas são mães, todas trabalham, todas correm atrás, todas têm muito claras suas perspectivas, o desejo de ter sua presença no mundo. Elas, enfim, são o movimento.

Eu acho que o filme serviu muito também a esse debate que está acontecendo e que eu acho super importante e fico muito feliz que ele também tenha representado nisso, ainda que de início a gente nem tivesse exatamente percebido ou tido essa clara intenção.