8 de janeiro: reação de Janja contra GLO a coloca como a primeira-dama mais influente do continente

Atualizado em 8 de janeiro de 2024 às 10:04

Lula e Janja

Lula disse no documentário da Globo que foi Janja, a responsável por alertar que decretar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) durante a tentativa de golpe no 8 de janejro seria tudo o que os militares queriam.

“Foi a Janja que me avisou: ‘Não aceita GLO porque GLO é tudo o que eles querem, é tomar conta do governo’. Se eu Se eu dou autoridade para eles [militares], eu tinha entregado o poder para eles”, falou o presidente.

Militares e até o ministro da Defesa, José Múcio, cobraram a decretação, mas o presidente bateu na mesa —literalmente— com a mão, e cravou: “Não ia ter GLO”.

O papel da primeira-dama no Brasil mudou radicalmente com a socióloga Janja Lula da Silva, segunda esposa do presidente Lula e primeira-dama desse seu terceiro mandato. Desde a campanha, com forte influência na agenda de Lula, e, após a eleição, até substituindo-o em agendas externas, Janja tem ascendência sobre a agenda do presidente Lula, frequenta encontros estratégicos do PT, e exerce um poder fora da hierarquia formal.

Participa de quase todas as viagens de Lula, opina em reuniões ministeriais, e planeja para breve um gabinete próximo ao do marido no Palácio do Planalto. Gente de dentro do Planalto não duvida de uma candidatura num futuro próximo.

Não há muitos paralelos no continente. Quem mais chega perto de Janja é a primeira-dama da Colômbia, Verónica Alcocer, esposa do presidente Gustavo Petro, ex-guerrilheiro – juntos há mais de 20 anos. Ela, que tem como referência Michelle Obama – possível candidata democrata -, já declarou que planeja um “projeto pessoal” no qual tenta, “construir um nome”. Pode começar testando a popularidade pela Prefeitura de Sincelejo, sua cidade-natal. Depois, o céu é limite.

No Chile, há vagas para para primeiras-damas. O presidente Gabriel Boric, presidente mais jovem da história do Chile, separou-se em novembro passado da namorada, a cientista social Irina Karamanos, uma relação de cinco anos. Boric publicou um longo texto no qual comunica a separação da sua companheira “por visões diferentes do futuro íntimo”. Irina já havia afirmado que não exerceria o papel de primeira-dama. No início de novembro, em um comentado TED Talk, ela discutiu “a ilegitimidade do papel de primeira-dama nas democracias contemporâneas” e falou do trabalho político de rejeitar esse poder, ainda que seja algo “muito incômodo”.

Na América do Sul, é curioso observar o perfil das primeiras-damas. A maioria conforma-se com um papel secundário. Na Bolívia, Lourdes Brígida Durán Romero, esposa do presidente Luis Arce, segue o manual: representa o governo na Unidade de Apoio à Gestão Social, trabalho social e protocolar. Lavinia Valbonesi, jovem primeira-dama do Equador, 25 anos, casada com o empresário Daniel Noboa, milionário e herdeiro de um império de empresas, não parece ter planos a curto prazo. Nutricionista, modelo e influencer digital, ganhou bastante espaço na mídia equatoriana ao ajudar o marido a ganhar mais espaço em redes sociais, como o TikTok. No governo, não exerce nenhum papel relevante.

Primeira-dama da Colômbia, Verónica Alcocer, esposa do presidente Gustavo Petro

Na Argentina, sempre surreal, o recém-eleito presidente, o ultradireitista Javier Milei, que não é casado, dividiu o papel de primeira-dama entre sua namorada de poucos meses, a comediante Fátima Florez, e a irmã caçula Karina – essa sim, com poder -, nomeada, inclusive, como secretária-geral da Presidêncian. No Uruguai, a primeira-dama Lorena “Loli” Ponce de León, jogadora de hockey, esposa do presidente Luis Lacalle Pou, não tem participação ativa.

Muito diferente dos tempos de Lucía Topokansky, durante o governo de José Mujica, que era ao mesmo tempo esposa do presidente e senadora, terceira na linha de sucessão. Mesmo caso do Paraguai, onde a primeira-dama Leticia Ocampos, esposa do mandatário Santiago Peña, pouco apita. Administra a Rede Paraguaia de Desenvolvimento Humano e concentra-se em questões sociais.

Mesmo a advogada Cilia Adela Gavidia Flores de Maduro, casada com o presidente da Venezuela Nicolás Maduro, seguiu uma carreira política atrelada ao chavismo. Apelidada de “primeira-combatente”, chegou a presidir a Assembleia Nacional do país entre 2006 e 2011, e foi foi nomeada procuradora-geral da Venezuela em 2012. Recentemente, foi incluída em uma lista de sanções pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos por suspeita de corrupção. A nova presidenta do Peru, Dina Boluarte, vive seus próprios dilemas, numa crise sem fim desde a destituição do ex-presidente Pedro Castillo, acusado de organização criminosa agravada, tráfico de influência e conluio.

Com tanto vai-e-vem na América do Sul, Janja tem como parâmetro, para ampliar e formalizar suas responsabilidades, o formato de atribuições exercida pela primeira-dama dos Estados Unidos – atualmente, a educadora Jill Biden, que substituiu justamente a deslumbrada Melania Trump, figura cosmética no governo Trump. Nos Estados Unidos, a primeira-dama tem as atribuições definidas pelo US Code (código de leis dos Estados Unidos), de 1978, além de memorandos, com acesso a um gabinete, direito de fazer viagens internacionais em nome dos interesses do Estado e defender causas públicas.

É outro país, considerando a última primeira-dama por aqui, Michelle Bolsonaro, evangélica, que chegou a afirmar que “a mulher é uma ajudadora do esposo”, chamou o sujeito de “imbrochável” e deixou-se usar, durante as eleições, para tentar, com louvores, reduzir a rejeição de Bolsonaro entre as mulheres – sem muito sucesso. A ideia era alimentar o imaginário construído pelas lideranças da base aliada cristã sobre o presidente: um homem com uma missão divina amparado por uma mulher submissa. Janja é o oposto de tudo isso.

O ultradireitista Javier Milei, que não é casado, tem como primeira-dama namorada a comediante Fátima Florez

Em nosso passado não muito distante, o papel da primeira-dama era ficar no quase obscurantismo, como Marly Sarney, esposa do ex-presidente José Sarney, e Marcela Temer, esposa de Michel Temer – apesar do disfarce de um certo programa Criança Feliz. De resto, a regra era limitar-se a tarefas como “presidir instituições de bem-estar, acompanhar o cônjuge em viagens oficiais e deveres cerimoniais”. Mesmo assim, no governo corrupto do ex-presidente Fernando Collor – depois impichado -, sua então esposa Rosane se meteu num baita escândalo de corrupção justamente ao presidir uma dessas “instituições de bem-estar”, no caso a Legião Brasileira de Assistência (LBA), entidade que presidia. Antes dela, na década de 40, Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, criou a Legião Brasileira de Assistência (LBA).

Com Juscelino Kubitschek, na década de 50, Sarah Kubitschek manteve o estigma dos projetos sociais, neste caso a Fundação das Pioneiras Sociais. Entre o jeito Marly de ser, e o jeito Rosane de meter a mão na cumbuca, tivemos duas primeiras-damas íntegras, comedidas cada uma ao seu estilo: a antropóloga Ruth Cardoso, esposa do então presidente Fernando Henrique Cardoso, lembrada pelo Programa Comunidade Solidária, e Marisa Letícia, que evitou ocupar funções políticas. Casada com Lula desde 1974, ela acompanhou a fundação do PT, viveu os momentos mais difíceis ao lado dele, quando era caçado pelo MPF (Ministério Público Federal) em Curitiba, e morreu aos 66 anos depois de sofrer um AVC.