“Apurar o quê?”: a Lei da Anistia favoreceu o esquecimento dos crimes da ditadura

Atualizado em 18 de abril de 2022 às 16:24
“Ditadura Assasina”

A anistia é o ovo da serpente. O vice-presidente Hamilton Mourão debochou da possibilidade de serem investigadas as torturas cometidas por militares durante a ditadura.

Mourão havia sido questionado sobre os áudios que mostram sessões do Superior Tribunal Militar (STM) na época do regime.

“Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô [risos]. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”, afirmou o general.

“História, isso já passou, né? A mesma coisa que a gente voltar para a ditadura do Getúlio. São assuntos já escritos em livros, debatidos intensamente. Passado, faz parte da história do país”.

Mourão ainda declarou que houve excessos de “parte a parte” — um clássico do cinismo.

Uma matéria da Deustsche Welle de 2018 explica o papel da anistia nesse tipo de canalhice e na nossa amnésia coletiva:

A Lei da Anistia de 1979, que perdoou crimes de motivação política, e o hiato de duas décadas nas investigações de assassinatos e desaparecimentos no período são alguns dos elementos citados como causa dessa falta de memória dos simpatizantes de governos militares. (…)

Criado para investigar violações de direitos humanos na ditadura, o grupo de trabalho da Justiça de Transição no Ministério Público Federal (MPF) já reúne 36 ações penais em todo o país. Mesmo em crimes comprovados, o máximo que o MPF consegue é reparação financeira para as famílias, pois muitos juízes recuam na hora de aplicar qualquer punição devido à Lei da Anistia, afirma o procurador da República Ivan Marx, coordenador nacional do grupo.

Por causa da legislação que perdoa crimes no período militar, apenas casos que envolviam pessoas mais conhecidas foram minimamente investigados, mesmo que superficialmente, como as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do político Rubens Paiva. Marx lembra que ações de órgãos estrangeiros começaram a mudar esse cenário. Em 2008 um promotor italiano, Giancarlo Capaldo, apurou casos de cidadãos daquele país mortos em regimes de exceção na América Latina, cinco deles no Brasil. E, em 2011, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não investigar crimes da ditadura.

“Ainda hoje há resistência em punir culpados, mas se o Judiciário não condena, o problema é dele; o Ministério Público é obrigado a investigar e apresentar denúncia sobre um crime que ocorreu. São homicídios, ocultações de cadáver e outros crimes, não podemos ignorar isso só porque alguém ‘se autoanistiou'”, afirma Marx.

Há mais de 400 réus nas ações penais apresentadas pelo MPF na Justiça de Transição. Esses processos, afirma Marx, são importantes para resgatar a memória do Brasil. Parte dos achados foram compartilhados e contaram com o apoio da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011.

“Isso não ocorreu em outros lugares, como a Argentina, que investigou os crimes da sua ditadura logo após seu término. Isso evita o esquecimento de atrocidades. O objetivo dessa memória que resgatamos é evitar que se repita. Mas, pela maneira como se vê militares falando em tomar o poder, parece que o esquecimento impera”, lamenta o procurador.

Brasil fez uma transição pelo alto

O exemplo argentino é citado também por Cláudio Beserra de Vasconcelos, doutor em história pela UFRJ e ex-integrante do Laboratório de Estudos sobre Militares na Política da universidade carioca. Ainda em 1983, ano do fim da ditadura e da eleição do presidente Raúl Alfonsin, a Argentina criou a pioneira Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que ouviu testemunhas e apurou crimes da ditadura.

Mourão e Bolsonaro juntos no dia da posse presidencial de 2019
Bolsonaro e Mourão

“Os casos de corrupção dos governos militares não são conhecidos porque não se podia investigar, pois a Anistia é uma lei do esquecimento. Na Argentina isso é lembrado a todo momento com os processos julgados, as pessoas punidas e as ações do grupo Mães da Praça de Maio”, diz Vasconcelos.

Para o historiador, a forma como se deu a transição do governo militar para um governo democrático no Brasil ajuda a entender a falta de punição e a complacência com a ditadura em alguns setores da população.

“Enquanto outros países fizeram uma mudança de governo com julgamentos e punições, no Brasil houve uma transição pelo alto. Não houve uma ruptura, foi um processo lento e negociado, que começou com o Ernesto Geisel, ainda na década de 1970. Uma elite militar e política fez a mudança, não a sociedade. O lobby feito para que os privilégios das Forças Armadas continuassem na Constituição de 88 é exemplo disso”, aponta Vasconcelos.

Pouco interesse pela verdade histórica

A advogada alemã Lilli Löbsack foi promotora de Justiça em Berlim e tem quase 40 anos de carreira jurídica internacional. Na década de 1980, ela foi ao Brasil para estudar as minorias afetadas pela ditadura militar e também acompanhou julgamentos de condenados da ditadura argentina. Ela critica o Brasil por não ter revisto a Lei da Anistia e afirma que isso contribuiu para a falta de conhecimento de parte da população sobre os crimes cometidos durante os governos militares.

“Lamentavelmente a maioria dos brasileiros não está interessada na verdade histórica do Brasil, parece preferir o esquecimento de tudo que passou durante o regime militar. Além disso, considero incompreensível que o Legislativo não tenha revogado ou revisado a Lei da Anistia ainda em 1985”, afirma a advogada alemã.

Löbsack menciona o exemplo de países que optaram por investigar e punir graves violações de direitos humanos, como a Argentina após a ditadura de 1976 a 1983 e a Alemanha após o regime nazista.

“A Argentina condenou mais de 150 militares e policiais que cometeram crimes na ditadura daquele país. A Alemanha também julgou e condenou criminosos nazistas a partir do Julgamento de Nurembergue. Até hoje a Alemanha lembra esses crimes e investiga. Por exemplo, em abril deste ano, a Promotoria de Stuttgart abriu um inquérito contra um policial do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau por ele ter prestado assistência em mais de 13 mil casos de homicídio”, conta Löbsack.