Críticos de Pasternak nem sequer leram o livro dela. Por Luís F. Miguel

Atualizado em 26 de agosto de 2023 às 8:32
Natalia Pasternak. Foto: Anna Carolina

Louvada por sua atitude corajosa na denúncia do governo Bolsonaro durante a pandemia, a bióloga Natália Pasternak tem sido atacada por defender o método científico – sobretudo desde a publicação do livro Que bobagem!, escrito com Carlos Orsi.

Mas parece que muitos de seus críticos nem a leram.

Método científico nos olhos dos outros é refresco.

É chato quando ficam dizendo que coisas que a gente gosta não passam no crivo. A gente só quer poder criticar os cloroquiners em paz, não é mesmo?

Então é bem óbvio porque o livro de Pasternak e Orsi incomoda. As pessoas não querem desgrudar de suas crenças.

Mas o método científico continua sendo o melhor caminho para controlar nossas armadilhas mentis, como o viés de confirmação, que faz com que se dê mais atenção àquilo que confirma o que já pensamos, e identificar o que realmente funciona e o que não funciona.

O livro de Pasternak e Orsi apresenta uma descrição cuidadosa do funcionamento do método científico, de como vieses cognitivos podem contaminar nossas percepções e porque é necessário controlá-los. Também decifra o funcionamento dos placebos, incluindo seus mecanismos tanto psicológicos quanto bioquímicos.

Feito para causar, o título do livro não ajuda. Mas o tom geral é cuidadoso.

Capa do livro ‘Que Bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério’. Foto: reprodução

A frase que está sendo sempre citada para acusá-los de positivismo raso – “a ciência pode reivindicar o posto de melhor descrição possível da realidade factual” – costuma ser citada sem contexto. Ela pode reivindicar, palavras que muitas vezes são omitidas nas citações, não necessariamente é.

E eles prosseguem: “Isso não significa que ela nunca erra, ou que uma descrição alternativa qualquer, obtida por outros meios, estará sempre, necessariamente, errada. Mas significa que, na maioria das vezes, havendo uma divergência entre descrições, aquela que foi produzida segundo a atitude científica é a que tem a maior chance de estar certa (ou menos errada)”.

No afã de condenar o livro, a desatenção ao que os autores escrevem por vezes chega à má-fé.

Um psicanalista “lacrou” assim: “Para diversas questões, a ciência é incapaz de estabelecer um veredito universal e aplicável a toda e qualquer situação. E nem é preciso mencionar que na escolha amorosa, por exemplo, diversos fatores nada científicos pesam muito mais que um tratado de microbiologia”.

Pois vejam o que se lê na página 8: “A constatação de que há ‘outros saberes’ ou ‘outras epistemes’ importantes para a vida humana, além da ciência, é muito verdadeira – ninguém pensa em conduzir um teste duplo-cego com grupo placebo antes de escolher um namorado, por exemplo!”

Ou seja: o exemplo que ele apresenta para “destruir” a obra já é contemplado pelos próprios autores.

Pasternak e Orsi assumem que a defesa da ciência pode assumir um tom desrespeitoso ou se confundir com práticas colonialistas. Mas isso não os leva a descartar o universalismo.

O escritor Saul Bellow certa vez fez uma provocação racista: “Quem é o Tolstói dos zulus?” Um jornalista negro, Ralph Wiley, respondeu: “Tolstói é o Tolstói dos zulus. A não ser que se considere vantajoso cercar de muros as propriedades universais da humanidade, convertendo-as em domínios tribais exclusivos”.

Vale para Tolstói, vale para o método científico.

Os autores escrevem que muitas das doutrinas que criticam às vezes se dizem apoiadas em métodos científicos, às vezes baseadas em outras lógicas. Mas é necessário escolher um só dos dois caminhos.

A polêmica relativa à psicanálise ilustra o ponto. Freud se via como cientista. Cogitava substituir a terapia por drogas, quando a química do cérebro fosse melhor compreendida. No final da vida, manifestava a preocupação de que a teoria lamarckiana dos caracteres adquiridos fosse invalidada inteiramente (como de fato foi), porque toda a sua obra ruiria junto.

A psicanálise pode fornecer ferramentas úteis para a compreensão de comportamentos individuais, de produtos culturais, da sociedade? Talvez. Pasternak e Orsi não discutem isso. É a pretensão de “ciência dura” que se dirigem.

A nova polêmica é por Pasternak ter criticado a decisão do Conselho Nacional de Saúde, que inclui os locais de culto das religiões de matriz africana como “equipamentos de saúde pública”.

Natália Pasternak durante a CPI da Covid-19. Foto: reprodução

Até Joel Pinheiro da Fonseca, o ex-direitista radical que hoje se esforça para ser progressista, veio dar pancada em Pasternak. Entre os argumentos, dele e de outros, a “insensibilidade” por publicar o texto “no momento em que o Brasil investiga o assassinato de uma mãe de santo”.

Um argumento capcioso. Ser contra a decisão do Conselho não implica nenhum preconceito contra religiões de matriz africana, muito menos ser indiferente à violência. Seria bom ler o texto de Pasternak antes de falar.

Ela é cuidadosa. Diz que a diretriz pode ser positiva se visar uma parceria entre locais de culto e serviços de saúde. Como muitas vezes esses locais são “portas de entrada para queixas de saúde física e mental”, os líderes religiosos poderiam encaminhar os fiéis para o atendimento médico.

Sua crítica é dirigida à declaração do Ministério da Saúde, de que as práticas dos locais de culto poderão integrar as práticas complementares do SUS. Isso significa dar a um ritual religioso o estatuto de tratamento médico.

A crítica à incorporação desregrada de práticas complementares, desprovidas de comprovação científica, de homeopatia e reiki a florais e constelação familiar, deve ser levada a sério.

Não tenho o que objetar à conclusão dela:

“É possível imaginar dois desfechos: um cenário onde um ministério comprometido com as evidências científicas submete as PICs [práticas integrativas e complementares] para avaliação científica, e cria um programa para incluir líderes religiosos e locais de culto como parceiros para facilitar o acesso da população a uma saúde pública baseada em medicina de verdade; outro, o cenário, populista, onde um ministério feito mais de slogans fáceis do que de substância, preocupado em agradar lobistas e nichos eleitorais, mantém as PICs, ignora a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde] e abre as portas para incluir não só ritos de matriz africana, mas de todos os tipos e origens, como “tecnologias” de saúde. Quem acha absurdo a ozonioterapia no SUS é porque ainda não viu o exorcismo.”

Originalmente publicado no Facebook do autor

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Luís Felipe Miguel
Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Demodê - Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.