“Devastou imagem de nosso país”: quem são as drags que enlouqueceram os fascistas

Atualizado em 29 de julho de 2024 às 19:26
Porta-voz do principal partido de extrema direita da França diz que cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos devastou imagem da França

A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos não incomodou apenas a extrema direita brasileira. Seus homólogos conservadores europeus foram na mesma linha.

Piche, a drag queen francesa que dançou de espartilho azul na cerimônia, parece ter perturbado o sono do líder da extrema direita holandesa. “O que esse absurdo tem a ver com os Jogos Olímpicos?”, perguntou no X o deputado Geert Wilders logo cedo no sábado. Ele é seguido por Jair Bolsonaro.

 

Outro amigo de Bolsonaro, o extremista de direita Matteo Salvini, vice-presidente do Conselho Italiano (governo) disse que a esquerda concorda em atacar os cristãos mas considera “blasfêmia quando publicam-se caricaturas de Maomé”, numa referência às charges da revista Charlie Hebdo, que terminaram em um atentado terrorista contra os jornalistas da publicação francesa.

O mesmo incômodo com a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos chegou ao Kremlin. “Um dos principais espetáculos dos Jogos Olímpicos foi uma paródia LGBT da Ceia – a última de Cristo – um tema sagrado para os cristaos. Os apostolos estavam representados por travestis. Aparentemente, em Paris, eles decidiram que os anéis olimpicos sendo multicolor poderiam transformar tudo em uma parada do orgulho homossexual”, declarou Maria Zakharova, porta-voz do governo russo.

Em inglês, a eurodeputada de extrema direita francesa Marion Marechal foi no mesmo tom. “A todos os cristãos do mundo que estão assistindo a cerimônia Paris 2024 e se sentiram ofendidos por essa paródia de drag queen da Última Ceia, saibam que isso não é a França que está falando mas uma minoria de esquerda pronta disposta a qualquer provocação. #Naoeumeunome”.

“Estou vendo a #cerimôniadeabertura dos JO com meus filhos. Difícil apreciar os raros quadros exitosos entre Maria Antonieta decapitada, o trio se beijando, as drag queens, a humilhação do Exército Republicano obrigado a dançar sob Aya Nakamura, a feiúra geral das roupas e coreografias. Procura-se desesperadamente a celebração dos valores do esporte e da beleza da França no meio da propaganda woke tão grosseira”.

“J-Woke”, concluiu, atribuindo aos Jogos a caricatura que a direita francesa emprega para qualquer pauta contrária às discriminações, em especial raciais, de gênero e sexualidade. 

O teor da crítica foi retomado horas depois por Carla Zambelli. 

O principal partido de extrema direita na França agregou o aspecto racista à crítica da cerimônia. “Que vergonha! Aya Nakamura não tem condições! A abertura dos Jogos Olímpicos é uma pilhagem para a cultura francesa”, publicou Julien Odoul, porta-voz do Rassemblement National (União Nacional).

Os comentários refletem, além da homo e da transfobia, o racismo da extrema direita europeia, pelo uso do termo “pilhagem da cultura francesa”, já que Aya Nakamura nasceu no Mali e, criada na França, tornou-se a cantora francófona mais ouvida no mundo. Os rumores de sua presença na cerimônia já haviam lhe rendido uma série de ataques da extrema direita do país, voltados aparentemente ao seu estilo musical e ao vocabulário de suas músicas, sendo acusada pelos racistas de não saber falar francês. Sua presença foi não apenas mantida, mas o local escolhido para sua apresentação, uma afirmação e provocação aos extremistas: a Academia Francesa. “Eu deveria escolher melhor meu vocabulário, para te agradar na língua de Molière”, diz um trecho de Aznavour cantado por Nakamura.

“Aos olhos do mundo, a França encarna a beleza, a elegância, o romantismo… Numa noite, os organizadores da cerimônia de abertura conseguiram a façanha de devastar a imagem de nosso país. É de chorar!”, lamentou Odoul.

Não somente os extremistas de direita choraram. A senadora da direita tradicional francesa Valérie Boyer criticou a visão da “nossa história que espetaculariza a decapitação de Maria Antonieta e busca ridicularizar os cristaos”.

O círculo racista/homotransfóbico/monarquista se fechou.

As drags foram parar na página de notícias do Vaticano, que repercutiu amplamente as críticas do episcopado francês, com uma mensagem “aos cristãos de todos os continentes que foram machucados pelo exagero e a provocação de certas cenas”.

O portal destacou um trecho da Conferência episcopal francesa considerando que a cerimônia “incluiu cenas de escárnio e de deboche do cristianismo, que nos lamentamos profundamente”. Uma crítica que combina com a do deputado Nikolas Ferreira.

O site de notícias vaticano considerou tratar-se de uma reprodução do quadro “A Última Ceia”, de Da Vinci.

Também foi destaca a publicação do padre Hugues de Woillemont no X: “Ontem, a abertura dos JO2024, de quadros emocionantes e espetaculares ! (sic) em contradição entre a inclusividade exibida e a exclusão efetiva de alguns crentes, não é necessário machucar consciências para promover a fraternidade e a sororidade”.

Entre os círculos intelectuais da direita francesa, não houve nada mais desastroso. “Não me parecia ser possível, de fato, fazer pior, ou seja, mais obsceno e conformista do que o Eurovisão”, disse o filósofo conservador Alain Finkielkraut em entrevista publicada nesta segunda-feira pelo jornal Le Figaro. A alusão é a um concurso televisivo de música, que moderniza tradições musicais de cada país europeu e próximo.

“Foi um espetáculo grotesco, que das drag queens a Imagine e da celebração da sororidade à decapitação de Maria Antonieta (uma das páginas mais gloriosas da nossa história) se desenrolavam todos os estereótipos da época.”

“A genialidade francesa brilhou por sua ausência”, considerou o membro da Academia Francesa.

“A nação definitivamente voltada para o futuro entrega a historiadores a tarefa de dilapidar seu legado”, disse em alusão a Patrick Boucheron, um dos idealizadores da cerimônia.

“A palavra que involuntariamente vem à mente diante desse fiasco grandioso foi decadência”.

Nesse ponto, o intelectual, que viu na chuva que se abateu sobre Paris uma expressão do dilúvio, que o transformou em crente, concordou com a reação de Viktor Orban, que considerou no último sábado um evento símbolo da “fraqueza e a desintegração do ocidente”.

Um dia depois das reações da Igreja Católica na França, o dramaturgo Thomas Jolly, diretor artístico da cerimônia, desmentiu que a cena das drag queens reproduzia a “Última Ceia”. Disse que se inspirou no quadro “A Festa dos Deuses”.

“Tem Dionísio que chega sobre  a mesa. Por que ele está ali? Porque ele é deus da festa (…), do vinho”.

“A ideia era fazer uma grande festa pagã ligada aos deuses do Olimpo… Olimpo… o olimpismo”, argumentou. Anne Descamps, diretora de de comunicação dos Jogos de Paris 2024, se desculpou: “Se houve pessoas que se sentiram ofendidas, pedimos desculpas”.

Nas redes sociais, as explicações do artista não foram unanimemente convincentes, ao ponto de que o noticiário francês de extrema direita CNEWS continuou alimentando a dúvida: “a sequência polêmica da cerimônia representou a Ceia ou de fato A Festa dos Deuses?”, sem trazer uma resposta afirmativa.

Denis Olivennes, diretor da Editis, editora pertencente ao grupo do magnata de extrema direita Vincent Bolloré, também proprietário de CNEWS, insistiu na hipótese de uma reprodução da “Última Ceia.”

“Não estou 100% convencido de que a Ceia seja ‘A Festa dos Deuses’. Difícil reconhecer Minerva, Diana, Março ou Vênus acompanhados do Amor, Flora, a deusa da primavera. Onde está a Lira de Apolo coroada? O clube de Hércules, o tridente de Netuno. É melhor assumir, certo?”, publicou no X.

Definitivamente, gênero, sexualidade e religião sao os aspectos que mais perturbam a extrema direita global.

Willy Delvalle
Mestre em Sociologia e Filosofia Política pela Universidade Paris 7. Formou-se em Comunicação Social: Jornalismo na Unesp. Em São Paulo, foi professor voluntário de português a imigrantes e refugiados. Atualmente, cursa mestrado em União Europeia e Globalização na Universidade Paris 8