A lacração do identitarismo contra Marcelo Rubens Paiva e a morte de seu pai na ditadura. Por Luis F. Miguel

Atualizado em 26 de dezembro de 2024 às 13:22
Marcelo Rubens Paiva ao lado de pôster de Ainda Estou Aqui. Foto: Reprodução

Por Luis Felipe Miguel, publicado em seu Facebook

Marcelo Rubens Paiva foi entrevistado no Roda Viva, tendo como foco, naturalmente, Ainda estou aqui – o livro que escreveu sobre sua mãe, Eunice, e que foi transformado em filme de sucesso por Walter Salles.

Não vi o filme. Não sou exatamente fã do cinema de Salles. Mas li o livro (embora também não seja fã da literatura do autor). A história é comovente.

Do Roda Viva, só assisti à pergunta que Tom Farias dirigiu ao entrevistado e a resposta que Marcelo deu. (Eu sempre insisto com os meus alunos que os autores precisam ser citados pelo sobrenome, mas, no caso, uma vez que estamos falando de muita gente da família Paiva, usar o prenome facilita.)

A pergunta é longa e sinuosa, para não dizer confusa. Basicamente critica o filme por falar de uma família de classe média da zona sul carioca, deixando de lado o povo preto pobre da periferia.

Na pergunta, o jornalista chega a citar, meio sem contexto, Carolina Maria de Jesus. A escritora teria dito que as reformas de base de Jango seriam “uma nova abolição”. Daí vem o golpe de 1964 e ela tem que se mudar da cidade de São Paulo para Parelheiros, onde viveu os últimos anos de sua vida.

(Parelheiros também fica na cidade de São Paulo, mas Farias, embora autor de uma biografia da escritora, não sabe disso.)

Se bem entendi, Farias estava reclamando que o sofrimento dela, mulher preta que veio da favela, não tinha espaço no filme.

Não vou disputar a relação de causa e efeito, no entanto muito problemática, entre a manifestação política da escritora e sua mudança de endereço. Vou aos fatos.

O pai de Marcelo, o deputado Rubens Paiva, teve seu mandato cassado. Foi preso pela repressão. Foi selvagemente torturado e, morto, não teve o cadáver entregue à família. Foi oficialmente dado como desaparecido, o que impedia a viúva de sequer poder movimentar os bens da família.

Nada disso parece ter importância. Afinal, ele era branco e bem de vida. Seu martírio não vale nada, sua dignidade não tem importância, sua história não merece ser contada.

Rubens Paiva, ex-deputado morto em 1971 durante a ditadura militar. Foto: Secretaria de Cultura de SP

Meus pais tiveram que mudar de cidade (não de bairro, mas de cidade e de estado) por causa da ditadura – no caso deles, isto é um fato, não uma conjectura, como no caso de Jesus. Nunca passaria pela minha cabeça sequer comparar o sofrimento deles, que ainda assim foi real, com o que aconteceu com a família de Marcelo.

Igualmente risível, para não dizer constrangedora, foi a observação do entrevistador sobre a cordialidade dos policiais que foram prender Rubens: se fosse um pobre ou um negro, eles não teriam dado bom dia.

Deram bom dia, depois torturaram, mataram e sumiram com o corpo. O que será que pesa mais: a saudação civilizada na porta de casa ou a barbárie nos porões?

É tudo lamentável: uma mixórdia que visa a lacração fácil, sem nenhum compromisso com os elevados ideais que supostamente estão em jogo (justiça, igualdade, liberdade). Como observou Camilo Aggio, o identitarismo (que, não me canso de repetir, não é a luta emancipatória dos vários grupos dominados, mas uma gramática específica que a enquadra na lógica neoliberal) é sobretudo “uma disputa por posições de poder e lucros os mais variados – do simbólico ao financeiro”.

Triste também ver como Marcelo, ao responder, se sentiu acuado e teve que se justificar falando dos meninos da favela do Pinto, de Marielle, dos comandantes negros da luta armada contra o regime militar, da militância de sua mãe em favor dos povos indígenas.

Quase assumindo que o sofrimento indizível de sua família não era o suficiente – que não era digno de ser retratado, que aquela dor devia se calar diante de outras dores.

Anos atrás, Regina Dalcastagnè comandou uma pesquisa que mostrou como a literatura brasileira se concentrava nos dramas de homens brancos de classe média. A pesquisa foi copiada para falar do cinema e, previsivelmente, mostrou que nos filmes também era assim.

Essa falta de pluralidade nos faz mal. Mas isso não quer dizer que não possa haver beleza e verdade nos livros e filmes que falam dessa classe média branca. Ou que uma obra com outro recorte será, só por isso, boa e relevante.

A ditadura causou muito sofrimento em muita gente – os perseguidos políticos, os torturados e mortos, os exilados, os censurados, os professores e estudantes silenciados, os trabalhadores explorados até o bagaço. Cada um deles contribui para construir nossa convicção: ditadura nunca mais.

E que mais e mais histórias sejam contadas, para que a memória daquele tempo sombrio permaneça viva. Não é apagando o martírio de Rubens, com seu impacto na vida de Eunice, de Marcelo e das irmãs, muito menos julgando que seu sofrimento não conta, porque tinham uma casa grande e a pele branca, que avançaremos nisso.

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Luís Felipe Miguel
Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Demodê - Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.