Liturgia do fim é o segundo romance da escritora Marilia Arnaud. Paraibana, Marilia publicou seu primeiro romance, Suíte de silêncios, pela Rocco, em 2012; antes, escreveu quatro livros de contos e participou de várias antologias. Liturgia do fim (Tordesilhas, 150 páginas) chegou recentemente às livrarias brasileiras.
Liturgia é um ritual ou cerimônia religiosa, característico do cristianismo, que exemplifica bem o ápice do enredo. Trinta anos após ser expulso de Perdição, sítio onde cresceu, Inácio Boaventura, professor de meia-idade, literato, casado, abandona a profissão, a família e a cidade grande, para voltar ao lugar de sua infância, que esconde episódios intragáveis.
Em Perdição, Inácio foi criado sob o jugo de um pai autoritário, conservador e religioso (“E a cadeira de balanço de papai, trono de um rei sombrio, soberano de um país perdido nas brenhas de uma serra, senhor de todas as coisas existentes em derredor e a partir de si, a casa e as pessoas que a habitavam, a terra e a água, as pedras e as árvores, os animais e as lavouras, as flores e as abelhas, e ainda o silêncio e a palavra, a última palavra”), prendendo-se ao afeto da mãe, Adalgisa, dócil e submissa, juntamente com os irmãos, um primo, uma tia louca confinada a um sótão, e uma criada, Damiana, “adotada” pela família ainda criança.
Em seu retorno, Inácio se depara com uma casa já decadente, suja, onde só restaram vivos o pai, já ancião mas ainda imponente, e Damiana. O enredo lembra o de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, publicado 40 anos antes, mas a prosa é inteiramente diferente.
Através da narrativa, entrecortada por lembranças de Inácio e o episódio de sua volta a Perdição, somos apresentados aos diversos aspectos que permeiam a personalidade do protagonista: o político, que, meio sem jeito, lutava pela redemocratização do país durante a ditadura militar; o romântico, acanhado, mas infiel à esposa, Ieda; o amante da literatura, que usava os livros para escapar de um mundo no qual não se encaixava; porém, sobretudo, o papel de filho.
Mais do que um romance sobre Inácio, o livro trata antes da relação entre pai e filho (“Poderia ter-lhe dito que não sou feliz nem infeliz, Ieda, sou tão somente o filho de Joaquim Boaventura”), mas também entre passado e presente, tradicionalismo e modernidade, conservadorismo e progresso. Perdição representa um ambiente patriarcal, obsoleto, retrógrado, do qual Inácio não conseguiu fugir, apesar de de lá ter sido expulso.
“Voltei para juntar os cacos dos dias partidos, manchados de terra e sangue, para recolher fragmentos de vidas atrás de portas fechadas e, com mãos pacientes, compor o mosaico de ontens irrevelados”, narra Inácio, ao retornar à casa paterna; apesar de já à beira da morte, aos cuidados de Damiana, seu pai vive como se nada no mundo exterior não tivesse mudado; interessante reparar como aquele “pai imenso, majestoso em sua fúria, maior do que toda memória”, se dedica com cuidado e esmero à apicultura, aprendendo tudo o que está a seu alcance sobre as abelhas, estas que têm uma rainha como governante, conquanto Perdição seja gerido por um homem.
A escrita de Marilia Arnaud é carregada de lirismo e intimidade com as palavras, intimidade esta compartilhada por Inácio, para quem a literatura servia de refúgio (“[a literatura] me despregava da realidade, um nicho de salvação ao qual eu me agarrava com força, um deus que não me tolhia nem me intimidava, a quem eu devotava meus mais alentados pensamentos, amor incondicional e definitivo, porque tudo me podia ser tirado, mas em qualquer temo e lugar eu teria ainda comigo a angústia de Hamlet, a solidão de Ivan Ilitch, a ambiguidade de Madame Bovary, o remorso de Ródia, e suas patéticas existências me narrariam e me justificariam, me fariam sentir que a vida se apiedava de mim”).
Marilia resgata com destreza o vocabulário nordestino tão rico em palavras que caracterizam nossa natureza, nossa cozinha, nossos vícios. A natureza, aliás, é elemento presente no romance, descrita minuciosamente, mas cuja beleza não consegue arrancar Inácio de sua melancolia (“A paisagem aberta, ora arroxeada de jitiranas, pinhões e maracujás-bravos, ora espinhosa de palmas, facheiros e caroás…”; “Fora de mim, vibrava em toda a plenitude um universo sólido, claro, reconhecível, do céu à terra a vastidão de um reino de beleza a resplandecer contra a minha dor, mas insuficiente para remediá-la”).
Utiliza-se, ainda, de versos soltos, ora de Augusto dos Anjos – também paraibano e livro de cabeceira do nosso protagonista -, ora de Allan Poe, ora de Rainer Maria Rilke. O romance é daqueles que dá vontade de sublinhar cada frase e cada citação e usá-los em outros contextos pela sua “boniteza”, como dizemos aqui no Nordeste.
“Liturgia do fim é o livro mais triste e mais bonito que li pelo menos nestes últimos dois anos”, disse a também escritora Maria Valéria Rezende, vencedora do prêmio Jabuti na categoria romance no ano passado.