“A esquerda pode ser extinta, assim como o bolsonarismo”, diz o jurista Pedro Serrano ao DCM

Atualizado em 2 de julho de 2025 às 0:48
Pedro Serrano em entrevista ao DCM

O DCM recebeu, na segunda-feira (30), o jurista Pedro Serrano, que analisou os movimentos políticos do Brasil e do mundo a partir das forças de coalizão do liberalismo com o fascismo e projetou uma nova construção do campo progressista para enfrentar essa realidade.

Segundo Serrano, o governador de SP, Tarcísio de Freitas, articula com o centro, o STF e setores estratégicos enquanto agrada o bolsonarismo, desenhando uma frente conservadora que pode excluir tanto Lula quanto Bolsonaro em 2026. Leia os principais trechos da entrevista:

A esquerda pode ser extinta, assim como o bolsonarismo

Eu acho, francamente, que estamos caminhando para um novo momento na política conjectural brasileira. É um rearranjo das forças de direita com o centro — esse centro que nos apoiou para enfrentar o extremismo bolsonarista, não porque tenha algum repúdio moral ao bolsonarismo, mas porque o bolsonarismo passou a atacá-los e, obviamente, tiveram que reagir para sobreviver. A forma de reagir foi se aliar conosco.

Acredito que essa aliança é o que está em questão hoje. Essas forças, como sempre, têm a oportunidade de dar uma pancada de um lado no bolsonarismo e, do outro, na gente, se quiserem. Está se construindo no país uma alternativa que nos exclui, junto do bolsonarismo. Existe o perigo de Lula enfrentar uma frente conservadora, como ocorreu em São Paulo, por parte de Boulos, e isso dificulta muito o nosso trabalho pela frente.

Tarcísio é extremamente mais perigoso que Bolsonaro

Com a condenação de Bolsonaro pelo Supremo, de forma rápida como está sendo, pois ele precisa ser condenado antes da eleição, o bolsonarismo não terá outro caminho senão apoiar Tarcísio, que conversa bem com esse setor, mas também com o STF e as forças de centro.

O mais importante de se analisar no evento da Avenida Paulista é a postura de Tarcísio de poupar o STF nas críticas. Isso sinaliza qual construção política ele está promovendo. Tarcísio, pela terceira vez, escolheu a camisa azul e não a verde-amarela, para mostrar que é de direita, mas não golpista. E tinha o número dois nas costas, para mostrar que o número um é Bolsonaro, uma forma de reconhecimento de hierarquia. Ele está profissionalizado em mandar mensagens de um lado e de outro e é extremamente mais perigoso para nós.

Tarcísio vestindo azul no ato de Bolsonaro na Avenida Paulista, no último domingo (29)

O STF é uma força conservadora de centro

O Supremo, hoje, é uma força de centro que interfere na disputa de poder, o que não deveria acontecer. Mas isso se deve à falta de cuidado dos nossos dirigentes ao nomearem ministros. A realidade é que interfere, faz parte do jogo.

Nos habituamos equivocadamente, nos últimos anos, a enxergar o STF como ponta de lança progressista. A maior parte dos ministros é conservadora. Trata-se de uma questão de diálogo: as forças conservadoras sabem atrair esses ministros. No Brasil, o conservadorismo não precisa tomar medidas graves, como na Turquia, na Hungria ou como Bolsonaro queria fazer, de agredir institucionalmente a Corte. Basta dialogar.

Há uma pressão para que Tarcísio ataque o ministro Alexandre de Moraes, e ele não tem feito isso. Inclusive, pelo que sei, há amizade entre eles. Esse tipo de postura pode até gerar uma contradição com o bolsonarismo e, nesse caso, eles racham, o que seria até melhor para nós. Mas você vê que, de um lado, Tarcísio tenta agradar o bolsonarismo ao máximo, para ter o apoio, e ao mesmo tempo agrada o centrão, mantendo o respaldo de forças como a Globo, alguns ministros do STF, partidos e parlamentares importantes. Estrategicamente, ele não está errado.

A nova esquerda precisa ser mais à esquerda

Não há outro caminho senão polarizar. Precisamos fazer de tudo para eleger Lula, mas, independente disso, isso apenas adiará uma questão central: a de que precisamos mudar o modelo da esquerda brasileira. Sim, esse modelo foi vitorioso e não podemos desprezar tudo o que já foi feito pelo país, mas temos que encarar que ele se esgotou aqui no Brasil e no mundo.

Esse modelo de esquerda, pós-Muro de Berlim, se exauriu. Precisamos construir uma esquerda mais esquerda, com mais personalidade. A extrema-direita está monopolizando a força transgressora existente na sociedade, que é justa em essência, pois não se satisfaz com o que o sistema oferece às pessoas.

O sistema capitalista neoliberal não oferece esperança, e fica parecendo que só a extrema-direita propõe alternativas. No campo político, é preciso oferecer horizontes, apresentar ideias e projetos de futuro que conquistem corações e mentes. Acho que, ao falar em projeto de futuro, devemos buscar nossa identidade mais à esquerda. Precisam surgir novas lideranças para comandar esse processo, com todas as contradições possíveis, pensando que tipo de socialismo se quer — mais humanitário, mais identitário, ou um consenso entre ambos.

Se conseguirmos eleger Lula, teremos, pelo menos aqui, quatro anos de respiro para reestruturar isso e torcer para que, no mundo, a esquerda também se reorganize. Esse centro que atraímos com o projeto de defesa da democracia acabará aliado à extrema-direita, pois ela contamina o centro e a centro-direita para projetos mais radicais — mesmo não sendo o núcleo do poder. E o momento mundial está a favor deles.

Manifestação na Avenida Paulista, em 2021, contra o então presidente Jair Bolsonaro

A “vitória monumental” de Trump

É terrível a decisão do sistema judiciário norte-americano de eliminar o direito constitucional da cidadania por nascimento, que entrará em vigor dentro de 30 dias. Isso revela uma grande vitória política interna de Trump e um vacilo da Justiça. Trata-se de um enorme desmoronamento da república norte-americana.

Isso significa um atentado contra os direitos — que não são abstratos, como se imagina, mas atos de poder. Para garantir os direitos, é necessário o poder do Estado, que assegura esses direitos contra outro poder do Estado, como o Executivo e, por vezes, o Legislativo. Por isso, é preciso força.

O Judiciário é quem garante os direitos nesse tipo de sistema. Quando se retira a força do Judiciário, mata-se o direito. Isso transforma Trump, de fato, em um imperador, a partir do monopólio do uso do poder político, sem a tripartição dos poderes. A própria Suprema Corte enfraquecer o Judiciário norte-americano é uma tragédia para os EUA e para o mundo.

A democracia liberal está em colapso?

A questão dos direitos não é apenas uma questão liberal, da forma como foram construídos no século XX. Os direitos não foram dados pela burguesia; eles foram conquistados pelos trabalhadores. Essa democracia constitucional do pós-guerra não existiria sem a ação das esquerdas no interior das sociedades capitalistas. Quando se fala em socialismo, fundamentalmente, não se trata de um sistema que exclui a liberdade.

Em Marx, a ideia de socialismo não é de um sistema que amplia o poder do Estado. Quando ele fala em “ditadura”, não é no sentido que usamos hoje. O Estado socialista, para Marx, existe para destruir o Estado, não para fortalecê-lo. Essa é a lógica do caminho para o comunismo. Portanto, quando se fala em socialismo, trata-se de radicalizar os direitos e não de extingui-los.

Quando os setores conservadores querem acabar com os direitos, atacam a democracia liberal, que hoje é muito mais evoluída do que no século XIX. O que essa democracia faz é apenas declarar os direitos. A burguesia luta para manter esses direitos como mera declaração. E nós lutamos para efetivá-los, queremos justiça social, igualdade e liberdade universais, e não liberdade apenas formal.

O problema não está em atacar a democracia liberal. A extrema-direita não ataca o Estado como força burocrática. Eles querem o Estado forte, armado, potente, como mecanismo de linguagem para atacar os direitos. Eles não atacam a burguesia que defende a mera declaração dos direitos porque, para a burguesia, se a declaração desaparecer, pouco importa. Eles atacam a nós, que não queremos os direitos como mera declaração, mas como realidade para todos.

Trump, por exemplo, ao atacar o sistema norte-americano, não questiona o imenso aporte financeiro dos EUA em armamento. Ele propõe retirar o poder dos direitos sociais, dos direitos humanos, dos direitos das minorias.

O que nos qualifica como esquerda é olhar para a história humana e perceber que a imensa maioria das pessoas, desde a Revolução Agrícola há 12 mil anos, viveu em sofrimento e dor. E nós queremos acabar com isso. Os democratas liberais estão satisfeitos, se adequam bem ao fascismo. A crise é nossa, que não estamos sabendo enfrentar isso. Porque eles atacam aquilo que defendemos. Eles não querem direitos, querem privilégios.

Bolsonaristas invadem a sede dos Três Poderes nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023

Esse papel é nosso, não do Lula

Temos que disputar o espaço disruptivo, que é o ambiente social, com eles. Não adianta cobrar de Lula que volte a ser uma liderança de movimento sindical. Hoje ele é uma liderança de país, de Estado.

Estou com uma visão totalmente diferente da mídia. Acho que ele faz um bom governo. Basta ver os índices — isso com um Congresso que é inimigo do governo e da sociedade. Mas não adianta atribuir a Lula e ao governo uma tarefa que é nossa, da sociedade civil organizada. Temos que aprender com os neoliberais como eles se organizaram.

Eles não ficaram apenas se organizando politicamente; criaram think tanks no início dos anos 1990, em uma febre que os reconstruiu. Formaram pequenos grupos, dialogaram. Quando a internet surgiu, aproveitaram a oportunidade. Nós precisamos fazer isso. Não podemos terceirizar a tarefa para o Judiciário ou para o Executivo. É um modelo diferente do que está posto: não disputar apenas governos, mas disputar cultura e vida social. Precisamos ter cinema, lanchonetes, namoros, encontros, entidades e ambientes de circulação social progressistas.

O fascismo quer nossa extinção física e simbólica

Não existe bolsonarismo moderado. Eles querem nossa extinção física. Mudaram a forma em relação ao passado: ao invés de governos de exceção, agora o Estado se manifesta por medidas de exceção, mas isso não é menos autoritário. A intenção é estabelecer medidas de exceção em um regime aparentemente democrático, permitindo práticas ditatoriais em seu interior. Foi assim que começou.

Fui um dos que identificaram esse fenômeno e escrevi sobre isso em 2006. Pouca gente fala que Javier Milei inaugurou uma nova forma, que Trump agora usa de maneira radicalizada: encurtar o tempo das medidas de exceção. Milei assume o poder e apresenta 600 projetos ao Parlamento, sob seu domínio. Trump edita centenas de ordens executivas. Isso significa instaurar uma ditadura de fato e subjugar o Judiciário norte-americano.

Essa gente é o extremo do mal. E se não conseguirem nos eliminar fisicamente, querem eliminar simbolicamente. Parte de nós acaba subjugada a eles, aderindo sem perceber. Tanto que há pessoas na esquerda tão fascistas quanto eles. Existem, por exemplo, discursos moralistas no campo sexual ou, a título de identidade, que são fascistas. Essa cooptação reduz nossa potência de existência. E outra parte do nosso contingente está perdida e sem projeto.

A missão dos progressistas

Estamos com uma tarefa humana: carregar a humanidade nas costas, pois a lógica da extrema-direita vai matar a humanidade.

Assista à entrevista na íntegra:

Thiago Suman
Jornalista com atuação em rádio, TV, impresso e online. É correspondente do Daily Mail, da Inglaterra, apresentador do DCMTV e professor de filosofia e sociologia, além de roteirista de cinema e compositor musical premiado em festivais no Brasil e no mundo