
No afã de rebater as críticas de que a Câmara dos Deputados costuma defender os interesses dos mais ricos, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) recorreu a uma declaração que não sobrevive a um farfalhar de páginas de um livro de História do ensino fundamental.
“A polarização política tem cansado muita gente, agora querem criar a polarização social”, disse em uma postagem nas redes.
A polarização social não é coisa nova criada agora. Foi implementada por aqui no momento em que o primeiro português escravizou o primeiro indígena para que ele carregasse na lomba a primeira tora de pau-brasil para a sua nau. Desde então, lá se vão mais de 500 anos de uma história forjada na escravidão que, depois, se adaptou em superexploração do trabalho, jornada 6 por 1, e coisas do gênero.
Quem acha isso um absurdo, vale lembrar que foi só em 2013 que o Congresso aprovou uma emenda constitucional equiparando as empregadas domésticas ao restante dos trabalhadores, o que ainda provoca muito ranger de dentes em setores da sociedade. Não foi ideia brilhante do parlamento, mas ocorreu após a Organização Internacional do Trabalho aprovar a convenção 189 com esse tema.
Do ponto de vista de parte do andar de cima, somos um transatlântico reluzente, com cabines diferenciadas, da primeira à terceira classe, de acordo com os esforço de cada um em comprar sua passagem – mesmo que aquilo que chamam de “meritocracia” seja hereditária por aqui.
A imagem é uma autoficção, claro, pois nunca deixamos de ser um navio que trafica mão de obra e que, ao primeiro sinal de tempestade no horizonte, aumenta a frequência do estalar do chicote sobre trabalhadores, enquanto os donos do empreendimento ficam protegidos, ouvindo violino e bebendo uísque.
Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que, se quisermos usar a analogia que estamos todos no mesmo barco, a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade em tempos difíceis e a primeira classe pague passagem de forma proporcional e progressiva à sua renda.

Quem acompanha a coluna sabe que defendo que um pacote, para ser justo, deve aprovar uma pancada maior primeiro em quem ganha mais, protegendo o máximo possível os que sempre se lascam. A questão aqui não é deixar de aprovar medidas austeras, mas socializar a chicotada. Claro que tirar dos ricos, cobrando deles uma porcentagem de Imposto de Renda pelo menos semelhante ao que paga a classe média baixa, não vai resolver as questões fiscais do país.
Mas é péssimo para a integridade do Brasil que, sob a justificativa de garantir a estabilidade financeira, seja subtraída grana de políticas usadas para garantir dignidade a quem tem menos enquanto que medidas envolvendo os que mais têm são postergadas.
O presidente Motta afirmou que “quem alimenta o nós contra eles acaba governando contra todos”. Mas quem ignora que o poder tem dono, acaba mantendo a desigualdade como sempre foi.
A desigualdade social dificulta que as pessoas vejam a si, e aos demais, como merecedores de igual respeito e consideração. E impacta o modo como as instituições se relacionam com a sociedade. Ou seja, passam a servir apenas a um grupo.
O Congresso Nacional parece ter perdido o pudor de dizer que tem lado. Não que precisemos de legenda, claro.