
Durou pouco mais de 48 horas o mundo em que Donald Trump, ao anunciar um tarifaço contra o Brasil, lançou, sem saber ou se importar, o mais eficaz dos mísseis contra seus próprios devotos bolsonaristas: um tiro direto no peito dos ricos que o veneram e o defendem com o fervor típico do colonialismo mental.
Essas 48 horas de sanidade coletiva foram possíveis enquanto o cheiro da pólvora ainda sensibilizava o que restava de razão e lucidez na sociedade brasileira. A parte sadia de nosso tecido social conseguiu, ainda que de forma efêmera, demonstrar à parte adoecida que o fascista alaranjado tratara o Brasil com desrespeito, desdém e uma tentativa explícita de humilhação perante o mundo. O governo cumpriu seu papel com uma defesa irretocável; a mídia compreendeu que o momento exigia coesão interna; e uma parcela relevante do cenário internacional saiu em nossa defesa.
Esse esforço coletivo e conjunto nos concedeu 48 horas de alívio.
É o que revela o levantamento da empresa Palver, publicado hoje, que analisou mais de 26 mil mensagens sobre o tema, extraídas de 100 mil grupos públicos, entre a quarta-feira, dia 9, e a sexta-feira, dia 11. O levantamento mostra que, já no terceiro dia, as engrenagens voltaram a se mover: a extrema-direita reassumiu as rédeas do discurso, como quem retorna triunfante ao trono após um breve cochilo.
Eis o retrato mais límpido e implacável do nosso tempo. Mesmo quando o tema implode a lógica do rebanho conservador, mesmo quando a realidade colide de frente com a mitologia, é o algoritmo quem vence.
O levantamento da Palver apenas reiterou o que já se tornara praxe: a esquerda iniciou em vantagem, mas rapidamente perdeu terreno para os disparos coordenados da extrema-direita. A narrativa reacionária, mesmo desprovida de qualquer substância racional, impôs-se — não por ser melhor contada, mas por ser mais amplamente distribuída. Cada mensagem, cada disparo, transforma-se em argamassa de uma doutrina edificada sobre a ilusão.
Enquanto seguimos debatendo “a comunicação da esquerda”, como se ainda estivéssemos em 1998, preocupados com a tipografia dos panfletos, o fascismo nos responde com precisão algorítmica: mente com método, impulsiona com estratégia. Que este episódio nos sirva de lição definitiva: não se trata de linguagem, nem de conteúdo, tampouco de verdade. Jamais se tratou disso.
O fascismo não é um acidente histórico; é, antes, uma tecnologia sociopolítica e econômica a serviço do capital, um dispositivo de emergência que o sistema ativa nos momentos de crise aguda, quando sua lógica interna já não sustenta os níveis mínimos de legitimidade social. Quando o liberalismo ilustrado começa a apodrecer, o fascismo surge como um perfume barato que tenta mascarar o odor, acompanhado do punho de ferro. No século XX, seu impulso foi transmitido pelas ondas do rádio e pelo cinema nascente — as big techs da época, àquela altura tecnologias recentes. Hoje, o fascismo é um fenômeno do feed. Seu corpo contemporâneo é algorítmico, engenhado pelas big techs que, sob o pretexto de promover liberdade, funcionam como correias de transmissão do império e de seus interesses espúrios.
Aquilo que um dia chamamos de “mundo livre” está sendo, a cada dia, dissolvido em linhas de código. O que agora se ergue em seu lugar é um mundo-espelho: delirante, avesso aos fatos, imune à razão. Não estamos enfrentando ignorância; lidamos com engenharia social de alta precisão. As grandes plataformas já erigiram uma realidade paralela, onde cada bolsonarista vive como cidadão de uma nação imaginária, uma república em que Lula é comunista, o STF é terrorista, Bolsonaro é honesto, Trump é santo e Elon Musk é um gênio — ainda que, no mundo real, a verdade seja exatamente o oposto.

A distopia que se aproxima tem nome, forma e método. Chama-se tecnofeudalismo — conceito desenvolvido por Yanis Varoufakis — e estrutura-se sobre uma rede algorítmica que funda um Estado digital criado pelo imperialismo, voltado ao imperialismo e reservado apenas a ele. Nossas chances de conter essa catástrofe são escassas, sobretudo porque somos um país periférico. Tentar disputar espaço com a extrema-direita nas redes sociais é tão eficaz quanto nadar contra uma corredeira digital projetada para nos afogar. Pouco importa quão engenhosas sejam nossas postagens, quão lírica a metáfora ou quão rigoroso o dado: se o algoritmo opera do outro lado — e ele invariavelmente opera —, seremos derrotados. A eleição de Trump em 2016, a de Bolsonaro em 2018 e, para os crédulos, a reeleição do primeiro em 2024, não foram fruto de cérebros geniais reunidos em um bunker fascista, mas de softwares funcionando silenciosamente em servidores da Califórnia.
Muitos de nós ficamos furiosos quando os russos baniram o Google ou quando a China ergueu sua muralha digital. Hoje, ajoelhamo-nos diante dos deuses da dissonância cognitiva, suplicando por regulação. Contudo, regulação é um luxo reservado a organismos vivos. Big techs não se regulam; desconstroem-se. Um sistema cuja lucratividade depende da mentira, da amplificação do ódio e da fabricação de consensos delirantes não deve ser ajustado: deve ser descontinuado. Não há democracia possível onde empresas triunfam à custa da erosão do real.
Enquanto estivermos subordinados ao algoritmo operado por um estagiário de Omaha — alguém que jamais ouviu falar do 8 de Janeiro, da ditadura militar de 1964, da quadrilha lavajatista, do golpe de Temer, do genocídio bolsonarista durante a pandemia de Covid, ou de qualquer um dos eventos fundadores de nossa tragédia contemporânea —, estaremos condenados. O campo progressista poderá, eventualmente, vencer eleições, mas jamais dominará o imaginário coletivo enquanto este permanecer enjaulado no Instagram, no TikTok, no YouTube, no WhatsApp e, sobretudo, indexado pelo Google. Venceremos, talvez, uma batalha; o campo de batalha, no entanto, já estará perdido.
A única chance real reside em encarar a verdade que tanto evitamos: o mundo digital, tal como se apresenta, é uma prisão ornamentada por filtros coloridos. E, se pretendemos salvar o que ainda resta de sanidade coletiva, não basta aprimorar nossos vídeos. Será necessário puxar o fio do circuito, romper o feitiço, arrancar o fascismo do colo das máquinas.
Se quisermos manter a mínima possibilidade de sobrevivência, chegou a hora de considerar seriamente a hipótese de banir as redes sociais do território brasileiro.