
O sociólogo Rudá Ricci utilizou-se de uma ONG da área de “educação e cidadania”, criada por ele próprio, para integrar um esquema de fraude em licitação, lavagem de dinheiro e desvio de recursos públicos que onerou a prefeitura de Pouso Alegre, município de 150 mil habitantes no sul de Minas Gerais, em R$ 473 mil.
É o que aponta o Ministério Público de Minas Gerais, em processo que move desde 2014 contra o sociólogo e um ex-secretário municipal – que seria o chefe do grupo dentro da prefeitura -, por improbidade administrativa.
As provas reunidas pelo MP-MG ao longo do processo mostram um esquema de desvio de dinheiro público que contamina do início ao fim a contratação da ONG do sociólogo. Contratado para produzir pesquisas, relatórios, campanhas e vídeos para aproximar a população do município dos processo de gestão dos recursos públicos, o que o instituto comandado por Ricci entregou à população do município mineiro foram dois CDs contendo piadas e capítulos de novelas.
Este é apenas um dos casos envolvendo Rudá Ricci e desvio de dinheiro público. A ONG Instituto Cultiva, fundada e comandada pelo sociólogo, coleciona contratos públicos com prefeituras e órgãos estatais espalhados pelo Brasil, todos com um ponto em comum: são feitos sem concorrência, por inexigibilidade de licitação, sob a alegada justificativa de “notória especialização” e única associação capaz de realizar as tarefas contratadas, todas ligadas a projetos na área de educação e cidadania.
Apesar disso, a equipe do instituto que abarca projetos pelo país – do Paraná ao Rio Grande do Norte – possui apenas três profissionais fixos, conforme mostra o próprio Cultiva. Um deles é o próprio Rudá Ricci, o presidente, o único a possuir um título de doutorado, em ciências sociais.
Abaixo dele no organograma, vem o vice-presidente, Ademir Castellari, cientista social, mestre em sociologia e ele próprio denunciado pelo Ministério Público de São Paulo por improbidade administrativa e fraude contratual e direcionamento de licitação no município de Osasco, na região metropolitana da capital (leia mais abaixo).
Depois, tudo o que existe são sete consultoras setoriais, a maioria estudantes de mestrado em áreas como história e ciências sociais, que trabalham como consultoras em apenas um projeto específico da ONG, chamado “comunidades educadoras”. (Nota da Redação: após a publicação desta reportagem, o Instituto Cultiva atualizou a sua página que exibe a equipe de funcionários, incluindo novos colaboradores além dos sete que constavam há mais de um ano).
Veja, abaixo, as acusações que pesam sobre Rudá Ricci e seu vice-presidente, bem como os contratos sob suspeita de sua ONG com o poder público em diferentes cidades e estados do país.
1 – Pouso Alegre-MG: R$ 473 mil por piadas e resumo de novelas
No dia 10 de outubro de 2011, o Instituto Cultiva foi contratado pela prefeitura de Pouso Alegre para a realização de “serviços especializados de consultoria para concepção de uma sistemática de gestão de participação popular”.
Conforme aponta o MP-MG, a fim de simular lisura no processo, o então secretário municipal, Douglas Tadeu, criou orçamentos falsos de outras empresas, para “comprovar” que o Instituto Cultiva oferecia o melhor preço, anexando à sua solicitação duas planilhas impressas em papel não timbrado, sem data e sem assinatura das empresas que supostamente as elaboraram.
Na realidade, como o MP-MG veio a descobrir, as duas empresas que teriam apresentado orçamentos mais caros que o Instituto Cultiva (“Lage e Lage Auditores” e “Gesplan”) jamais forneceram as planilhas que constavam com seus nomes no processo. Elas foram formuladas por Douglas Tadeu Dória, com valores superiores aos ofertados pela ONG de Rudá Ricci.
Assim, a prefeitura contratou o Instituto Cultiva para realizar pesquisas de campo e apresentar relatórios sobre como engajar a população na gestão dos gastos públicos. Por 12 meses de trabalho, a ONG receberia R$ 950 mil.
Sete meses após o início da vigência do contrato, no entanto, o MP-MG conseguiu suspender os trabalhos e pagamentos, graças aos indícios de fraude apurados. Até aquele momento, a prefeitura já havia repassado R$ 473 mil ao Cultiva, a primeira parcela foi paga em 22/11/2011, antes mesmo da comprovação de qualquer serviço executado
Veja, abaixo, trecho da denúncia do MP-MG que relata as causas da suspensão dos pagamentos, que venham sendo feitos sem que o instituto entregasse à prefeitura as atividades contratadas.

Entre os serviços contratados e pagos pela prefeitura à ONG de Rudá Ricci, estava a realização de uma pesquisa de campo, para a qual o Cultiva deveria contratar e coordenar uma equipe de 30 pesquisadores.
Na realidade, porém, ao fim de sete meses, apenas oito pesquisadores estavam em campo. Já a coordenação dos trabalhos ficou a cargo de uma servidora municipal, subordinada ao secretário Douglas Doria e por ele designada para fazer os trabalhos que deveriam estar sendo feitos pelo Cultiva. Veja, abaixo, trecho da denúncia do MP-MG.

Também constava no contrato que o Instituto Cultiva deveria entregar à prefeitura mineira, a cada mês de vigência do contrato, um conteúdo em vídeo de 10 horas de duração, contendo imagens das pesquisas de campo realizadas e gravações na cidade de entrevistas com cidadãos de Pouso Alegre.
Mas não foi isso que aconteceu. Após sete meses de contrato, tudo o que o MP-MG encontrou de material audiovisual produzido pela ONG e em posse da prefeitura foram dois CDs. Neles, ao invés das 70 horas de gravações contratadas e pagas pelo município, estavam gravadas apenas 4h30min de imagens. E, ao invés de serem reproduções das entrevistas e imagens da cidade, o que as mídias continham eram:
1) pequenos vídeos educativos produzidos pelo Ministério da Saúde;
2) pequenos vídeos copiados do YouTube acerca de eventos ocorridos em cidades do Brasil;
3) vídeos de divulgação dos patrocínios dados por empresas particulares, como a NESTLÉ (reproduzidos no site “Youtube”);
4) slides com vasto repertório de piadas do tipo “Joãozinho”
5) slides com sinopses escritas de novelas da TV
6) vídeo sobre realizações da Prefeitura de Machado/MG
No trecho da denúncia do MP-MG reproduzido abaixo, é possível notar a surpresa e a revolta dos promotores mineiros a se depararem com a fraude:

Diante das provas reunidas em um processo com mais de 20 mil páginas, quando confrontado pelo Ministério Público sobre o direcionamento da licitação, Douglas Dória tentou justificar a escolha do Instituto Cultiva invocando uma suposta afinidade temática e experiência anterior da entidade — algo que ele associou informalmente à ideia de “notória especialização”.
Tal alegação, porém, não possui qualquer respaldo documental, não foi formalizada no processo licitatório e tampouco atende aos requisitos legais previstos na Lei de Licitação (nº 8.666/93). Na realidade, ao longo do processo, o Ministério Público foi categórico ao demonstrar que a contratação foi direcionada, os orçamentos fraudados, e o pregão inteiramente viciado, invalidando qualquer tentativa posterior de legitimação por especialização presumida.
O MP solicitou a quebra judicial do sigilo bancário do Instituto Cultiva, que comprovou que cerca de R$ 200 mil haviam sido movimentados através de “saques em cartão” – uma movimentação atípica para gestão empresarial que o MP qualificou como “manobra sabidamente adotada por aqueles que pretendem ocultar o real destino do dinheiro”, sugerindo possível lavagem de dinheiro, no vulgo esquema de “rachadinha”.
O processo judicial por improbidade administrativa contra Rudá Ricci e as autoridades de Pouso Alegre tramita há mais de dez anos e se encontra perto de sua conclusão.
Em março deste ano, o MP-MG apresentou suas alegações finais. Nelas, os promotores afirmam que “os réus agiram com a intenção deliberada de desviar recursos públicos, motivo porque se impõe a condenação ao ressarcimento dos danos causados ao erário.” Veja abaixo:

2 – As fraudes apuradas em Osasco

Ademir Ângelo Castellari, vice-presidente do instituto Cultiva, é alvo de ação civil pública por improbidade administrativa movida pelo Ministério Público de São Paulo.
O motivo: um contrato firmado entre uma ONG presidida por Castellari (Sampa.Org – Rede Pública de Comunicação e Informação) e o município de Osasco, em 2012. Tanto o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) quanto o Ministério Público e a Justiça de São Paulo já reconheceram a inidoneidade da contratação, mas o processo judicial se arrasta até hoje, com recursos do vice de Rudá interpostos nas cortes superiores do país, em Brasília.
Conforme aponta o TCE-SP, a Sampa.Org fechou um contrato com o município paulista de R$ 877 mil. Assim como no caso de Pouso Alegre, o objeto da contratação era genérico. Veja, abaixo, trecho de relatório da corte de contas paulista:
“Foi transferido inicialmente o montante de R$ 702.473,74 (setecentos e dois mil, quatrocentos e setenta e três reais e setenta e quatro centavos) à Instituição ‘SAMPA.ORG – REDE PÚBLICA DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO’, decorrente da celebração dos Termos de Convênios nº 25/2012 e nº 50/2012, destinados à ‘formação de 60 jovens de 16 a 21 anos de idade, possibilitando o desenvolvimento de habilidades dentro do universo da ocupação predefinida no arco ocupacional telemática’ e ‘acompanhamento e formação de crianças e adolescentes em medida sócio-educativa em idade de 12 a 18 anos’”.
De acordo com o TCE-SP, porém, dois erros insanáveis constavam na execução do convênio:
a) falta de comprovação documental idônea a demonstrar o emprego da importância glosada à finalidade eleita;
b) terceirização das atividades convencionadas à associação escolhida segundo critérios desconhecidos, sem qualquer justificativa de proveito econômico, com menoscabo aos princípios da isonomia, impessoalidade e eficiência.
Resultado: o Ministério Público de São Paulo denunciou a ONG na Justiça, por improbidade administrativa.
Ainda segundo o MP-SP, “além do desrespeito direto à legislação no tocante à dispensa da licitação, graves irregularidades consistiram na suposta exorbitância dos pagamentos efetuados pelo Município de Osasco em favor da contratada, conforme notas de empenho, pelo fato de ter ultrapassado em muito os valores dos contratos (principal e aditamento), que pelos números apresentados pelo autor foram pagos a mais R$ 1.831.747,48, valor que extrapolou o que estava previsto no contrato e ainda não teriam sido prestados os serviços contratados”.
Assim, em 2019, a Justiça de São proferiu decisão constatando que “indícios de ocorrência de improbidade administrativa, abundando nos autos a prova documental que dá conta da celebração do contrato administrativo rejeitado pela Corte de Contas deste Estado.”
Atualmente, o processo se encontra em fase de recurso no STJ (Superior Tribunal de Justiça), após a ONG de Ademir ter sido condenada na Justiça paulista.
3 – Os contratos sem licitação do Instituto Cultiva por todo país
Documentos públicos revelam que o Instituto Cultiva demonstra histórico recorrente de formalização de contratos via dispensa/inexigibilidade, sem licitação competitiva, apresentando como justificativa oferecer projetos inovadores e inéditos na área educacional ou social por sua notória especialização em consultorias em orçamento participativo/gestão democrática e projetos de educação cidadã.
Uma análise das descrições da página institucional da própria entidade sobre os editais que venceu apresentam descrições e termos inequivocamente genéricos de “consultoria em participação popular”, “educação cidadã e gestão democrática”.
São conceitos amplamente dominados por centenas de profissionais e organizações no mercado educacional brasileiro, tornando injustificáveis as contratações por “notória especialização” em projetos supostamente únicos e insubstituíveis. A ‘notória especialização’ alegada contrasta com descrições padronizadas de consultoria organizacional, disponíveis em qualquer manual de administração pública.
Os cursos à distância incluem temas como “Orçamento Público: diretrizes e implementação” “Educação Popular”, “Gestão Escolar” e “Mediação de Conflitos” – conceitos fundamentais ensinados em qualquer curso básico de administração pública ou pedagogia no Brasil.
Mesmo o programa “Comunidades Educadoras”, apresentado como inovação única, é descrito pelo próprio IC como “projeto que visa transformar a educação pública através da intersetorialidade, conectando as áreas de educação, saúde e assistência social” – metodologia de intersetorialidade amplamente conhecida e aplicada por gestões municipais em todo o país.
A metodologia central do programa – “visita de educadores às famílias dos estudantes das redes públicas, no intuito de gerar informações sobre condições de vida” – replica procedimentos padrão de programas sociais como o Estratégia Saúde da Família e os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), em funcionamento há décadas no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Assim, em 2016, quando a Prefeitura Municipal de Guanhães (MG) realizou uma contratação direta do Instituto Cultiva por inexigibilidade de licitação, esta foi objeto de representação apresentada ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG).
A representação alegava “fortes indícios de dilapidação do patrimônio público”, relatando “a ocorrência de fraudes em todas as áreas da Administração Pública, em especial, nas áreas de Educação e Saúde”, referindo-se aos documentos licitatórios apreendidos durante a “Operação Cartas Marcadas”.
O TCE-MG reconheceu dano ao erário no valor atualizado de R$ 213.426,56. A impunidade, porém, veio por meio da prescrição: passaram-se cinco anos de idas e vindas recursais, o que impossibilitou a aplicação de sanções ou determinação de ressarcimento e o processo (nº 977579) foi extinto em 2023 por prescrição, sem análise do mérito. No entanto, o caso foi encaminhado ao Ministério Público de Minas Gerais, que adota medidas judiciais e investigativas dentro de sua competência constitucional contra o IC.
Já no ano passado, no Rio Grande do Norte, o Instituto Cultiva assinou termo de colaboração 03/2024 no valor R$ 1.346.000,00 com a Secretaria de Educação estadual.
O contrato se deu prevendo “transferências de recursos a Instituições Privadas sem Fins Lucrativos (Instituto Cultiva)”, indicando que o dinheiro público seria transferido diretamente para uma organização da sociedade civil (OSC) sem fins lucrativos, sem que houvesse uma compra direta de bem ou serviço.
O Instituto Cultiva é formalmente uma associação privada sem fins lucrativos, conforme registro na Receita Federal. No entanto, o termo de colaboração foi executado, como é o padrão do instituto, com dispensa de chamamento público devido à “notória especialização” do IC para desenvolver o Programa “Comunidades Educadoras”.
Um ano depois, em fevereiro de 2025, foi assinado o 1º Termo Aditivo, ampliando em R$ 807 mil o repasse e prorrogando a vigência por mais seis meses (até meados de 2025). Com isso, o valor total do convênio passou a R$ 2,421 milhões.
Apesar de movimentar altos valores por meio de contratos com o poder público, Rudá Ricci é alvo de uma execução judicial movida pela Caixa Econômica Federal desde 2008 (Processo nº 0027636-41.2008.4.01.3800, Justiça Federal – TRF1), referente a um empréstimo não quitado em nome do Instituto IPESE, do qual era dirigente e avalista. A dívida, ainda ativa em 2025, teve origem em um contrato firmado com a CEF no valor original de R$ 20 mil e permanece em cobrança judicial.
Paralelamente, um ex-sócio de Rudá, o professor Frederico Sotero de Vasconcelos, move há mais de duas décadas um processo de cumprimento de sentença (Processo nº 7867324-72.2002.8.13.0024, 32ª Vara Cível de Belo Horizonte) por inadimplência de um acordo judicial no valor de R$ 52.000,00.
O acordo, homologado em 2002, previa o pagamento em oito parcelas mensais com vencimento antecipado e multa de 10% em caso de descumprimento. Rudá Ricci não pagou as parcelas acordadas, o que levou à abertura de processo de penhora de bens.
Ao longo dos anos, Ricci apresentou diversas contestações e impugnações, que foram rejeitadas, e o processo segue em curso.
As tentativas de bloqueio de bens pelo sistema BacenJud revelaram a inexistência de valores disponíveis nas contas de Ricci, dificultando o ressarcimento da dívida. Atualmente, o valor da execução ultrapassa R$ 495.900, revelando um padrão de resistência ao cumprimento de obrigações judiciais mesmo em decisões já transitadas em julgado.
Rudá Ricci se apresenta em suas redes sociais como defensor ardoroso da educação pública, sistematicamente buscando parcerias com o setor público em nome de bandeiras nobres e legítimas e em nome do legado de grandes pensadores, como Paulo Freire.
A página do Instituto Cultiva descreve o programa “Comunidades Educadoras” como sendo “reconhecido internacionalmente pela UNESCO”, implementado em diversos municípios. Ricci também escreve artigos defendendo melhorias na educação brasileira e critica o sistema de avaliação IDEB, e se diz consultor da ONU, informação cuja veracidade não pode ser comprovada.