Só um chefão pode tudo no Brasil. Por Moisés Mendes

Atualizado em 26 de julho de 2025 às 8:14
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Foto: Reprodução

Boca de Cobra estava proibido de falar com os comparsas fracassados do plano de tocar fogo na prefeitura, no foro e na Câmara de Vereadores de Garatimbica. Não está mais. Por isso, se reúnem todos os dias, às gargalhadas, e combinam mais ameaças. O importante é ameaçar.

Ameaçam o prefeito, o juiz e até a Câmara, mesmo que muitos comparsas sejam vereadores. É preciso manter as facções mobilizadas. São várias as facções em torno de Boca de Cobra.

Um bando atua no estrangeiro e já mobilizou até governos de fora contra os inimigos de Boca, que é réu por ter liderado os incendiários da prefeitura, do foro e da Câmara e também é investigado em mais uma dúzia de inquéritos.

Boca de Cobra é bandidão. Ameaça o juiz e manda os seis filhos repetirem as ameaças. Chama os vereadores da sua turma e determina que reforcem as advertências ao juiz, que deve recuar e anistiar Boca de Cobra ou ir embora da cidade.

Quase todos os bandidos de Garatimbica foram contidos pelo Ministério Público e pelo Judiciário, mesmo sem terem feito nem 10% do que Boca de Cobra vem fazendo. Todos foram alcançados, menos Boca e os bandidos dos bandos dele.

Mesmo sendo réu, mas continuando solto porque, teoricamente, não representaria ameaça à sociedade, Boca de Cobra alerta, chantageia, participa de comícios no coreto, no meio da praça, faz gritarias e mobiliza robôs até da Indonésia em suas redes sociais. Grita porque continua solto. É ameaçador, mas parece não representar nenhum risco. É agressivo e incendiário, mas, para muitos, é quase inofensivo.

Boca de Cobra já se envolveu em todo tipo de crime e continua em liberdade. Continua fazendo ameaças ao juiz e ao prefeito, e continua solto. Já avisou que um bandidão de outro país vai ajudá-lo a implodir Garatimbica, mas continua falando.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Foto: Reprodução

Porque Boca de Cobra tem o que os outros bandidos não têm. Tem o respaldo da democracia. Boca sabe usar a democracia. Usa, como poucos, a liberdade de expressão.

Boca de Cobra sabe usar até a força e a reputação dos especialistas. Quando é acossado pelo tal sistema de Justiça, os jornalões de Garatimbica chamam os especialistas.

E os especialistas, que se apresentam como juristas, operadores do Direito, cientistas políticos e assemelhados, dizem que Boca de Cobra pode continuar ameaçando o prefeito, o juiz e os inimigos porque é assim que funciona a democracia.

A democracia permite que Boca continue solto, agindo contra a democracia. Se Boca de Cobra destruir a democracia, mais adiante a democracia se recompõe.

O que vale para Boca de Cobra vale também para muitos dos seus aliados. Mas só para eles. Mesmo que uma parte da facção principal, a ala militar, já tenha sido contida e desmoralizada pelo juiz. O chefão não se esforçou para salvá-los.

Porque Boca tem o poder civil e tem o que os cientistas chamam de base social sólida. E ainda conta com o apoio de boa parte da elite da cidade, mesmo que saibam que ele é terrivelmente bandido.

Ainda tem bom apoio por ter feito todo tipo de serviço sujo para impedir que o comunismo tomasse conta de Garatimbica. O comunismo, o ateísmo e o sem-vergonhismo imoral. Boca de Cobra é patriota e moralista.

Ouvem-se ao longe as gargalhadas do bando do Boca de Cobra toda vez que alguém lê em voz alta as controvérsias dos especialistas sobre a situação da bandidagem tratada com excepcionalidades.

Os especialistas dizem que Boca pode continuar ameaçando o juiz, pode liderar o grupo que ameaça implodir a cidade e pode até fazer nova arrecadação via PIX para sustentar três filhos incendiários no exterior, porque tudo é legal.

Tudo se sustenta no direito de organização do bando do Boca de Cobra. E principalmente no seu direito absoluto de continuar dizendo o que bem entende. Depois, se cometer algum delito de fala, aí o Judiciário pode agir.

Antes, não. Boca de Cobra pode ameaçar quem considera inimigo, pode até repetir que vai matá-los na ponta da praia, como fizeram na ditadura — e ele mesmo disse que faria de novo — que não acontece nada. É a liberdade de opinião. Porque Boca de Cobra está apenas opinando que deseja matar quem o contraria. Não está planejando, só dizendo o que pensa. Só isso.

Boca pode tudo. Quando controlou a farmácia popular da cidade, numa época em que seu bando assumiu o poder em Garatimbica, determinou que não haveria vacina contra uma peste que assolava o mundo. E mandou que a população tomasse remédio para vermes. Milhares morreram tentando matar vírus como se fossem vermes.

Bolsonaro testa positivo para Covid-19 - Jornal O Globo
Bolsonaro se atrapalha ao colocar máscara cirúrgica durante a pandemia de Covid-19. Foto: Adriano Machado

Não aconteceu nada. Um inquérito sobre esse caso está morto e embalsamado em uma gaveta do Ministério Público. E assim Boca de Cobra, seu núcleo crucial e suas facções periféricas vão levando a vida em Garatimbica. Tudo o que Boca faz, e que outros bandidos assemelhados não podem fazer, é amplamente discutido juridicamente em Garatimbica.

Todo bandido, grande ou pequeno, é interditado pela Justiça para que não movimente dinheiro e, assim, morra de asfixia financeira. Mas isso não acontece com Boca. O que mais Boca de Cobra faz é movimentar dinheiro. Ele adora dinheiro vivo, impresso, em papel.

Debate-se agora se o juiz que vai julgá-lo — e que ele persegue — deve mandar prendê-lo, porque Boca de Cobra teria passado dos limites, mesmo que ninguém mais saiba dizer quais são os limites de qualquer coisa em Garatimbica. E todos dependem do juiz, mas questionam e criticam o juiz e não fazem nada parecido com o que o juiz já fez e continua fazendo.

Boca de Cobra é um caso único. Está à espera de uma condenação previsível e continua solto, falante e ameaçador, como se fosse um réu diferente. Poucos questionam a liberdade de expressão e de ação mafiosa absoluta do bandido, porque contrariar Boca de Cobra ainda é um perigo em Garatimbica.

Há poucos dias, um comparsa do chefão confessou ter montado um plano para mandar matar o prefeito, o vice e o juiz que julga as facções de Boca de Cobra. Os jornalões deram notinhas.

Boca ainda mete medo, avança, provoca, recua um pouco, mas mantém o núcleo do bando sempre ao seu redor. Alguns acham que está na hora de conter o chefão, porque só ele faz o que bem entende, sempre com o aval dos especialistas.

Outros entendem que o melhor é esperar o julgamento final do seu caso como líder dos incendiários da prefeitura, do foro e da Câmara, no momento em que o maior mafioso do mundo se dedica, em Washington, ao plano de destruição de Garatimbica, para que Boca de Cobra seja anistiado antes de condenado.

Alguns especialistas admitem que Boca de Cobra é o incentivador e seria o principal beneficiado pela destruição da cidade. Mas a hermenêutica, essa senhora já caduca, acha que é complicado implicá-lo. Provas, provas, é preciso ter provas.

Com o nome de Deus impresso em letras douradas na sua tornozeleira preta, Boca de Cobra não pode ser tolhido no seu direito de ir, vir, voltar, andar e pular na direção que bem entende.

E por aí anda ele, sempre gritando liberdade, liberdade, liberdade, com sua língua pontuda e sua boca de cobra, carregando um galão de gasolina em uma mão e uma Bíblia e uma metralhadora na outra.

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/