“Deus não faz política”: Muniz Sodré e o avanço da religião sobre a política no Brasil

Atualizado em 27 de julho de 2025 às 12:10
O professor e escritor Muniz Sodré – Foto: Reprodução

Em artigo intitulado “A doença infantil da teocracia”, publicado na Folha de S.Paulo deste domingo (27), o professor e escritor Muniz Sodré critica o uso crescente de discursos religiosos na política brasileira, citando episódios recentes envolvendo a ministra Marina Silva e o prefeito Eduardo Paes. Segundo ele, “os discursos públicos têm sido regidos por uma retórica teológica, disfarçada de centro, para enriquecimento pessoal e fortalecimento da ultradireita, de megaigrejas, big techs e agronegócio”. Sodré classifica esse fenômeno como “teocracismo”, uma mistura populista de fé e poder que esvazia o debate político e ameaça a laicidade do Estado. Confira trechos:

Retornando ao Congresso para debater o projeto que, em suas palavras, “quebra a coluna da proteção ambiental no país”, a ministra Marina Silva voltou a sofrer ataques, como há um mês. “A senhora como ministra é uma vergonha”, ouviu de um deputado. Da outra vez, ela se retirou dignamente do recinto. Desta, respondeu quatro vezes com trechos bíblicos. Assegurou que, no futuro, Deus julgaria quem estava correto.

Na mesma semana, o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (PSD) foi acolhido em uma Assembleia de Deus por um bispo-vereador como “pré-candidato a governador”. Seu bilhete de entrada era a construção do Parque Terra Prometida, com temática bíblica, na zona oeste da cidade. O parque contará com representações relevantes para o imaginário evangélico, como o caminho do Monte Sinai, onde Moisés recebe os Dez Mandamentos.(…)

Fato desconcertante: os discursos públicos têm sido regidos por uma retórica teológica, disfarçada de centro, para enriquecimento pessoal e fortalecimento da ultradireita, de megaigrejas, big techs e agronegócio. Não significa projeto coerente de teocracia, mas pavimentação de um atalho autocrático por mistura de fé e política, desde o impeachment de Dilma Roussef em 2016, aos brados de “voto por Deus”. É o “teocracismo”, subproduto psicossocial de um capitalismo apenas predatório, ensejo retórico para manipulação populista da equivalência de Deus a dinheiro. Adultos espertalhões, mas doença infantil da teocracia.

Toda retórica, técnica de linguagem destinada a convencer, altera o real por inversões no discurso: ficção em troca do fato, mito no lugar da história. É próprio à literatura, mas problemático quando a realidade se produz, por retórica, como vasta prótese de linguagem.

O que humana e civilmente se espera da política não é o jogo numérico de visualizações que informa as bolhas de ignorância do mundo real. Espera-se historicidade, ou seja, intervenção por palavras e ações no jogo dialético da sociedade com o Estado. Parlamento não é igreja. Trocar linguagem laica por religiosa é confundir debate político com moral. Inconfesso desejo de uma “sharia” no lugar da Constituição, implícito na frase “para mim, o que vale é a lei de Deus”. Dita pelo ex-presidente, serve também ao chefe carioca do tráfico no Complexo de Israel.

Marina Silva queria diálogo, os deputados preferiam passar o trator. Os insultos eram chamariz de atenção das redes, para encobrir o projeto de devastação do meio-ambiente. A ministra estava só, falaria sozinha. Talvez devesse ter-se retirado, como antes. Com sua pia resposta, acabou trocando linguagem de Estado, jurídico-política, por teologia. Vácua, porém: Deus não faz política.(…)