Brasil fora do Mapa da Fome: a reconquista do pão

Atualizado em 28 de julho de 2025 às 15:43
O Brasil não está mais no Mapa da Fome. Foto: Divulgação

Há conquistas que pertencem à ordem da esperança. Outras, mais raras, à ordem da reparação. Foi anunciado há pouco, em Adis Abeba (Etiópia), que o Brasil foi oficialmente retirado, pela segunda vez em sua história, do Mapa da Fome da ONU.

Em 2014 o Brasil havia deixado o mapa pela primeira vez, e volta a alcançar esse feito em tempo recorde — desta vez, após menos de três anos de reconstrução institucional. É, sem dúvida, motivo de alegria — mas também de lembrança. Porque, para que um país seja reinserido no rol da dignidade, é necessário antes admitir que dele foi violentamente arrancado. E foi isso o que nos aconteceu.

Voltar ao Mapa da Fome em 2021 não foi fruto de descuido, nem de tragédia inevitável. Foi a culminância de um assalto ao Estado, iniciado em 2016, com o golpe jurídico-parlamentar desenvolvido e organizado por generais brasileiros, pelos endinheirados do rentismo da Faria Lima e por interesses estadunidenses, que conduziu o vetusto Michel Temer ao poder, com sua agenda de saque ao bem público e à destruição dos direitos trabalhistas e do Estado de seguridade social estruturado pelos governos petistas.

Com zelo — e muita pressa —, o vampiro da Lapa desmontou a fundo todas as engrenagens da política social brasileira. Do pesadelo do golpe ao pesadelo do fascismo, foi um passo curto, curtíssimo, e fomos arrastados à beira do abismo por um governo que não escondia seu desprezo pelos pobres, sua antipatia pela vida dos vulneráveis, seu gozo punitivo em administrar a escassez como doutrina.

Em meio à maior crise sanitária do século, Bolsonaro nos empurrou — a todos — para dentro da cova. A fome voltou ao Brasil pela mão de homens que desprezam a política, mas a usaram com precisão para promover a matança sob o manto sagrado da proteção do Estado.

A notícia desde Adis Abeba reverte, hoje, esse itinerário de violência social. O que se celebra não é um milagre espontâneo, tampouco representa um avanço moral da sociedade brasileira. Não: é, com todo o rigor, uma vitória política. Com “P” maiúsculo e com afeto. Desde a posse de Lula em 2023, uma ofensiva civilizatória foi posta em marcha. O Bolsa Família renasceu, não como alívio emergencial, mas como direito reconquistado.

O Brasil Sem Fome articulou mais de 80 políticas para restaurar o cotidiano do prato e da dignidade. O Cadastro Único deixou de ser apenas um mapa da carência e passou a ser ferramenta de reconstrução da cidadania. E tudo isso, sem arroubos nem marketing, levou o país, em menos de três anos, à menor taxa de subalimentação desde que se tem registro.

É previsível que o governo, ao anunciar a boa nova, apresse-se em proclamar que o feito pertence à sociedade como um todo. Mas é aí que recuso a unanimidade. Voto contra o relator!

O mérito não é coletivo. Se a sociedade brasileira, em sua maioria, fosse merecedora dessa conquista, Temer não teria ascendido ao poder, e Bolsonaro não teria sido mantido. O país que tolerou o desmonte do SUS, assistiu inerte à extinção dos estoques públicos de alimentos e sufragou, com entusiasmo, políticas de exclusão, não pode reclamar para si a glória da reconstrução.

Esta pertence, com justiça, à esquerda democrática, aos servidores públicos que resistiram no silêncio institucional, aos movimentos sociais que não cederam ao cansaço, à inteligência administrativa e à compaixão política que enfrentaram interesses brutais, quase sempre derrotados — mas convictos de que a batalha maior ainda se travava. E continua a travar-se.

Perdemos embates no Parlamento, tomado em 2018 por uma maioria corrupta, argentária e uma bancada fascista pequena, mas barulhenta, mantida e alimentada pela impunidade, comprada a peso de ouro e ressentimento. Fomos vencidos por parcelas da classe média que, do alto de sua indiferença — ou de um gozo obsceno —, assistiram com complacência ao retorno da fome como política de Estado.

Também fomos derrotados por uma imprensa que, em nome do rentismo, aplaudiu cortes em políticas públicas, regozijando-se com a fartura de dinheiro nos bolsos dos endinheirados. Mas derrotas não são destino. São episódios. A guerra — feita de obstinação, lucidez e memória — prossegue.

Enquanto escrevo, sei que milhões ainda vivem à beira da insegurança alimentar. Não me escapa a persistência das desigualdades, nem me deixo seduzir por vitórias provisórias. No entanto, é preciso reconhecer o extraordinário: sair duas vezes do Mapa da Fome, em menos de vinte anos, é algo sem precedentes.

Mais ainda quando a segunda saída ocorre em tempo tão curto, após o colapso orquestrado por uma direita que permanece ativa, empenhada em impedir qualquer gesto de redistribuição. Muitos de seus líderes, com assento no Congresso, nas redes e nos salões do poder, agem abertamente para restaurar o projeto que empurrou o país ao abismo. E, se lhes fosse permitido, terminariam o trabalho iniciado na pandemia: matar os pobres aos milhões, por omissão ou convicção — o mais provável.

Por isso, celebrar a saída do Mapa da Fome é mais do que comemorar uma estatística. É lembrar que o pão não cai do céu: ele é plantado, colhido e repartido por mãos humanas.

Que não se esqueça jamais: a fome é sempre obra de uma escolha política. E o seu fim, também.