
Situando o imbróglio
No final do mês de julho o governo dos Estados Unidos anunciou a aplicação de sanções ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, com base na Lei Global Magnistky destinada a impor sanções “a estrangeiros acusados de corrupção ou violações graves de direitos humanos.”
Pelo dispositivo da lei já se deveria perceber os limites objetivos de sua aplicação e finalidade. Fosse uma lei brasileira e já poderíamos afirmar: deve ser aplicada apenas a estrangeiros acusados de corrupção e aqueles que praticam graves violações de direitos humanos. Ora, não consta que o ministro Alexandre de Moraes possa ser enquadrado em uma das duas especificidades. A menos que o intérprete seja alguém imbuído do mesmo espírito que levou à tese de que o artigo 142 atribuía às Forças Armadas o papel de poder moderador. Seria uma interpretação curupira.
Voltemos. Conforme comunicado divulgado pelo Secretário do Tesouro americano, o ministro Alexandre de Moraes foi punido porque “utilizou seu cargo para autorizar detenções arbitrárias preventivas e suprimir a liberdade de expressão“. Afirmou ainda que “Alexandre de Moraes assumiu a responsabilidade de ser juiz e júri em uma caça às bruxas ilegal contra cidadãos e empresas americanas e brasileiras“.
Segundo a autoridade, “Moraes é responsável por uma campanha opressiva de censura, detenções arbitrárias que violam os direitos humanos e processos politizados — inclusive contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. A ação de hoje deixa claro que o Tesouro continuará a responsabilizar aqueles que ameaçam os interesses dos EUA e as liberdades de nossos cidadãos.”
Preservando um razoável nível de racionalidade, é possível afirmar que, não obstante as acusações feitas pelo governo americano ao ministro Alexandre, o que temos, no caso, é uma clara tentativa de interferência política externa operada pelo governo de Donald Trump para submeter o STF e o governo brasileiro aos interesses do governo americano e de parlamentares brasileiros de extrema-direita — em especial, Eduardo Bolsonaro — que buscam evitar condenações de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores pelos eventos de 8 de janeiro de 2023. Isso é fato.
Assim, a pergunta que se impõe é: o que o Direito nos diz sobre a aplicação destas sanções? Há precedentes nos EUA que nos digam algo sobre o tema? Ou, no caso, o Direito desaparece e tudo se transforma em um mecanismo político de poder?
Origem da Lei Magnistky
O nome é uma homenagem a Sergei Magnitsky, advogado e auditor que, em 2008, expôs um grande esquema de fraude fiscal envolvendo autoridades russas. Após denunciar o caso, de acordo com as autoridades norte-americanas, ele foi preso injustamente, torturado e acabou morrendo na prisão em novembro de 2009 (a Rússia contesta todas essas afirmações).
Em resposta, o Congresso dos EUA criou, em 2012 (durante o governo Obama), a Lei Magnitsky original (Russia and Moldova Jackson-Vanik Repeal and Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act of 2012), que visava punir os responsáveis russos pela morte de Magnitsky e por outras violações de direitos humanos no país.
A origem dessa lei está diretamente ligada ao lobby realizado por William Browder, investidor britânico e associado de Magnistky que atuou junto ao congresso norte-americano pela aprovação da lei, conseguindo assim uma aprovação bipartidária — com anuência de democratas (que estavam no poder) e republicanos (à época, oposição).
Vale dizer que Browder, após a aplicação das sanções a Alexandre de Moraes, se manifestou afirmando que seu uso no caso foi uma deturpação para fins políticos.
Em resposta à Lei Magnistky, a Rússia aprovou a Lei Dima Yakovlev vedando a adoção de crianças russas por parte de norte-americanos.
Mais tarde, em 2016, ainda sob Obama, a lei foi expandida com a Lei Global Magnitsky, permitindo sanções contra pessoas e organizações de qualquer nação envolvidas em abusos graves, como tortura, assassinatos extrajudiciais, repressão política ou corrupção em larga escala.
Durante o governo Trump (2017), a lei foi posta em prática inicialmente por seis anos (Decreto Executivo 13.818). Porém, em abril de 2022, o Congresso americano tornou a legislação permanente e reforçou seus mecanismos, consolidando-a como uma das principais ferramentas de sanção unilateral dos EUA.
As penalidades incluem vistos negados, congelamento de bens nos EUA e restrições financeiras contra os sancionados.

Busca pela derrubada da Lei Magnitsky
Após a aprovação dessa legislação em 2012, como à época essa lei tinha o escopo se sancionar apenas os russos que estavam envolvidos no caso do próprio Magnistky a questão foi tratada diretamente por advogados russos que estavam interessados que a legislação — que inicialmente tinha tempo definido — não fosse renovada e caísse por terra o mais rápido possível.
É nesse contexto que surge a figura da advogada russa com ligações ao Kremlin, Natalia Veselnitskaya, quem atuou como representante de interesses russos, buscando minar a legitimidade da Lei Magnitsky. Veselnitskaya argumentava que a lei era baseada em informações falsas e que Sergei Magnitsky não era um denunciante, mas sim um criminoso que foi devidamente condenado.
Como parte de sua estratégia de atuação, Veselnitskaya ajudou a financiar a produção de um documentário chamado “The Magnitsky Act — Behind the Scenes“, que buscava desacreditar a narrativa ocidental sobre o caso. Além disso, representou empresas e indivíduos russos afetados pelas sanções, tentando reverter congelamentos de bens no exterior.
No entanto, Veselnitskaya ficou mundialmente conhecida após se reunir com Donald Trump Jr., Jared Kushner e Paul Manafort em junho de 2016, na Trump Tower. Ela alegou ter informações que poderiam prejudicar a candidata Hillary Clinton, mas o foco principal da reunião foi a busca da revogação da Lei Magnitsky.
Especula-se que o governo russo via a eleição de Trump como uma oportunidade para reverter as sanções.
As ações russas não deram certo e as acusações de interferência russa na eleição de Donald Trump repercutiram negativamente no país e irritaram Trump. Assim, em 2019, Veselnitskaya foi acusada de obstrução da justiça por supostamente mentir sobre seu envolvimento com o governo russo em um caso de lavagem de dinheiro relacionado à fraude investigada por Magnitsky.
Contestações da Lei Magnitsky nos tribunais
Tendo em vista a recente aplicação de sanções da baseadas na Lei Global Magnistky ao ministro Alexandre de Moraes, a pergunta que se impõe é: como os tribunais americanos têm atuado frente às contestações dos indivíduos sancionados com base nesta lei?
Os prognósticos não são favoráveis.
Um dos casos mais notórios de contestação de sanções aplicadas por oficiais dos EUA baseadas na Lei Global Magnitsky é o caso do bilionário russo Oleg Deripaska — dono da Rusal, metalúrgica líder na produção alumínio — que ingressou com uma ação contra o governo americano por conta das sanções que lhe foram impostas.
Em sua ação, Deripaska afirmava que as sanções impostas pelo governo americano, baseadas em uma lei aprovada em resposta a suposta interferência russa nas eleições de 2016, por ligações com o presidente russo Vladimir Putin, eram uma forma injusta de retaliação e que ele era a mais recente vítima de brigas internas e da reação política contra a Rússia.
Conforme Deripaska alegou em sua ação, a aplicação das sanções com base na Lei Magnitsky havia violado o due process of law, uma vez que o comunicado do secretário do tesouro que aplicava as sanções havia se baseado em reportagens de jornais e que as demais razões para a aplicação haviam sido consideradas como “informações classificadas”, sendo-lhe negadas pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Office of Foreign Assets Control), por ser estrangeiro e não estar protegido pela 5ª emenda.
Deripaska argumentou, ainda, que suas alegadas atividades (como comprar uma fábrica em Montenegro a pedido de Putin) ocorreram antes da crise ucraniana e não se enquadravam no escopo das ordens executivas.
Todavia, em 13 de junho de 2021, o tribunal distrital de Washington, D.C., rejeitou as alegações de Deripaska, decidindo que:
- O Ofac não agiu de forma arbitrária, baseando-se em evidências suficientes (incluindo informações classificadas)
- O Ieepa (Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional) concede ampla discricionariedade ao Executivo em questões de segurança nacional.
- Deripaska, como estrangeiro sem residência nos EUA, não tinha direito ao devido processo sob a 5ª Emenda.
Conforme a decisão do juiz Amit P. Mehta, o tribunal não pode substituir a avaliação do Executivo sobre ameaças à segurança nacional: ”Deripaska solicita a este tribunal que questione a Ofac sobre onde sua expertise e, portanto, sua autoridade, se encontram em seu máximo. O tribunal se recusa a fazê-lo. Novamente, o tribunal enfatiza que sua revisão nesta “área na intersecção entre segurança nacional, política externa e direito administrativo é extremamente deferente“.
Inconformado, Deripaska apelou da decisão do tribunal regional para a Corte de Apelação do distrito de Columbia que, em uma decisão per curiam, rejeitou o recurso de Deripaska, pelos seguintes fundamentos:
Não obstante o press release da Ofac, o fundamento jurídico das sanções está nos atos presidenciais (E.O. 13661 e 13662), que se aplicam às condutas atribuídas a Deripaska. A nota de imprensa citada por ele não invalida os memorandos oficiais de evidências do Ofac, que são a verdadeira base da decisão. Portanto, o tribunal afirmou a existência de base legal para as sanções impostas.
Ademais, conforme o precedente estabelecido em Departament of Commerce v. New York (2019), um tribunal não pode rejeitar as razões formais de uma agência simplesmente porque a agência também pode ter tido outras motivações não declaradas expressamente.
Da mesma forma, o tribunal entendeu que não estariam sendo aplicadas sanções retroativas — condutas anteriores às ordens executivas — afirmando que, com base em Holy Land Foundation for Relief & Development v. Ashcroft, (D.C. Cir. 2003), o governo pode impor sanções com base em um padrão contínuo de conduta, mesmo que parte das evidências se refira a fatos anteriores à designação formal.
A corte aplicou esse precedente para sustentar que o Ofac podia considerar a conduta de Deripaska anterior à ordem executiva, já que havia indícios de que esse comportamento continuava depois dela.
Com isso, o tribunal concluiu que não houve excesso de autoridade, nem arbitrariedade ou contradição nas sanções e confirmou a decisão do tribunal distrital, mantendo Oleg Deripaska sob sanções norte-americanas.
Deripaska tentou levar essa decisão da Corte de Apelação do Distrito de Columbia à Suprema Corte dos Estados Unidos, ingressando com um writ of certiorari em junho de 2022. Todavia, a Suprema Corte rejeitou sumariamente o pedido em outubro do mesmo ano.
Self-restraint e desvio de finalidade
Com efeito, verifica-se uma alta deferência (self-restraint em grau acentuado) das cortes às decisões do Executivo quando o assunto envolve atos administrativos de aplicações de sanções a indivíduos estrangeiros e sem vinculação direta com os Estados Unidos.
Segundo se pode compreender do contexto em que foram exaradas essas decisões, essa alta deferência torna difícil o questionamento dessas ordens executivas pela via judicial, o que indica a necessidade de ações do governo brasileiro para proteger os ministros do Supremo de interferências estrangeiras em suas decisões.
De todo modo, os precedentes não apontam claramente para a questão da aplicação da lei em desvio de finalidade — que nos EUA costuma vir a partir da análise “excesso de autoridade” (ultra vires doctrirne) e “abuso de discricionariedade” (abuse of discretion). De fato, A US Supreme Court se recusa a examinar qualquer decisão desse quilate, por extrema deferência.
Porém, ainda assim persiste o “desvio de finalidade” e sobre esse tema há precedentes.
Nesse sentido, deve ser observado as previsões constantes na Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act — APA) de 1946, que estabelece que um ato administrativo pode ser anulado se for “arbitrário, caprichoso ou um abuso de discricionariedade“.
Ainda, recentemente a própria Supreme Court operou o overruling de Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc. (1984), determinava que os tribunais deveriam deferir às interpretações das agências reguladoras em caso de ambiguidades. Em 2024 ao julgar Loper Bright Enterprises v. Raimondo, permitindo um controle judicial mais amplo dos atos administrativos por parte do Judiciário.
Da mesma forma, em um precedente mais antigo, Citizens to Preserve Overton Park v. Volpe (1971), a Supreme Court já havia determinado que as decisões administrativas deveriam ser submetidas a um exame minucioso (hard look). Nesse caso o Secretário de Transportes havia autorizado o uso de fundos federais para construir uma rodovia através de um parque público, alegando que “não havia alternativa viável e prudente“. O tribunal anulou o ato por falha em considerar fatores relevantes (como impactos ambientais) e por desconsiderar o propósito da lei autorizativa (proteger parques públicos). Eis, pois, o reconhecimento do desvio de finalidade.
A holding do caso é que atos administrativos devem estar amparados em fundamentos relevantes e alinhados aos propósitos legislativos, não em motivações ocultas e alheias à lei. Parece ser o caso da aplicação da Lei Magnitsky.
Portanto, ainda que se possa verificar uma situação de extrema deferência judicial quando o assunto é a aplicação de sanções administrativas a estrangeiros, há evidentes precedentes importantes anulando atos administrativos realizados com excesso de autoridade, abuso de discricionariedade ou amparados em pretextos escusos.
Tenho que são precisamente estas razões que tornam amplamente viciada a aplicação de sanções realizadas com base na Lei Magnistky ao ministro Alexandre de Moraes. Não se está diante de uma pessoa acusada de corrupção e, muito menos, um “grave violador de direitos humanos”, mas sim de um magistrado que está atuando dentro dos limites impostos pelo Direito do Brasil — que, ao fim e ao cabo, decide colegiadamente. O que evidencia que os atos administrativos do Secretário do Tesouro (e do governo americano) incorrem em desvio de finalidade na aplicação.
Interessante também seria saber — e isso verei nos próximos dias — o que pensam os mais importantes juristas do EUA (que tanto inspiram os doutrinadores brasileiros) acerca dessa lei de alcance além-fronteiras e que não possui respaldo naquilo que se entende por direito internacional. Ou, no mínimo, se tiver, não poderia ser aplicada fora de seu telos.
Numa palavra: não estamos em face de um problema jurídico. Trata-se de geopolítica. Países poderosos não têm sua soberania ameaçada ou invadida. Porque têm forças para responder. Não é caso brasileiro. Todavia, de acordo com o que se insiste em chamar de direito internacional, um país pode, sim, elaborar suas leis como a Magnistsky. Desde que não viole os outros acordos internacionais de que o país seja signatário. Como a Magnistsky, assim como o Foreign Corruption Practices act, atinge a autonomia e soberania de outros países, o que é vedado pela carta das Nações Unidas, não poderiam ser promulgadas. Volta a valer, então, a inexistência do direito internacional.
A ver.
Post scriptum: a decisão do ministro Flávio Dino
Para quem criticou a decisão de Dino, cabe a pergunta: como deveria ser a decisão? Dizer que o Brasil é uma republiqueta e que uma lei que viola todos os tratados, como é o caso da Magnistsky, é plenamente eficaz por aqui?
Bom, o STF poderia aproveitar e declarar a inconstitucionalidade do artigo 17 da Lindb que dispõe que “As leis, atos e sentenças de outro país (…) não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional…” (a frase contém forte ironia).
Publicado originalmente no Conjur