
POR REYNALDO ARAGON
Donald Trump assinou uma ordem executiva que, sob o rótulo burocrático de “State Sponsors of Wrongful Detention”, muda as regras do jogo internacional. O decreto autoriza os EUA a classificar como “Estado patrocinador de detenção indevida” qualquer país que prenda um cidadão norte-americano. A consequência imediata é a abertura de um arsenal de coerção: sanções financeiras, controles de exportação, restrições de visto, isolamento diplomático e campanhas de deslegitimação. O que se apresenta como proteção humanitária é, na verdade, a legalização de um cheque em branco para interferências externas. A partir de agora, Washington se dá o direito de intervir em qualquer soberania nacional sempre que seus cidadãos forem tocados — sejam diplomatas, lobistas, operadores privados ou agentes de desinformação.
A medida se ancora em legislações históricas como a International Emergency Economic Powers Act (IEEPA) e a National Emergencies Act (NEA), que permitem ao presidente impor sanções extraterritoriais sob o pretexto de “emergência nacional”. Também dialoga com operações encobertas da CIA. Assim, embora a ordem não declare abertamente o direito de realizar golpes de Estado, ela cria a moldura jurídica para que sanções econômicas, lawfare e ações clandestinas sejam combinadas como instrumentos de guerra híbrida. O ethos da medida é inequívoco: o império agora assume, em papel timbrado, que sua vontade se sobrepõe a qualquer tribunal estrangeiro.
Do ponto de vista do direito internacional, o decreto é uma afronta direta à Carta da ONU (art. 2º, §4º), à Resolução 2625/1970 e à Carta da OEA (art. 19), que condenam a ameaça e o uso de coerção política ou econômica contra Estados soberanos. Mas na prática, nenhuma corte internacional tem força para obrigar Washington a recuar. A ordem executiva opera sob a lógica do dólar e da força: um decreto assinado em Washington pesa mais que resoluções aprovadas em Nova York. O ethos imperial se impõe sobre o ethos da cooperação internacional. Democracias latino-americanas passam a viver sob chantagem institucionalizada: exercer soberania significa arriscar represálias devastadoras.
Não é coincidência que a América Latina seja o laboratório prioritário dessa doutrina. O Brasil já sofreu tarifas de 50% impostas por Trump e viu o ministro Alexandre de Moraes ser pessoalmente sancionado pelo Tesouro americano — um ataque inédito ao Supremo Tribunal Federal. A Venezuela e a Colômbia permanecem como alvos clássicos, onde agentes da DEA, contratados privados e operadores políticos são blindados por essa nova moldura. No Caribe, Cuba e Nicarágua estão sob a espada suspensa de sanções automáticas. O ethos da intimidação é claro: juízes, promotores e ministros da região sabem que qualquer ato contra cidadãos americanos pode disparar retaliações, convertendo a soberania em risco calculado.
O cenário brasileiro ilustra o funcionamento dessa engrenagem. Paulo Figueiredo ironizou em rede social que “seria ótimo” se Alexandre de Moraes prendesse um cidadão americano. Marco Rubio reforçou a ameaça: “Se usar um americano como moeda de troca, enfrentará severas consequências”. Eduardo Bolsonaro, por sua vez, acusou Moraes de corrupção sem provas. Essa triangulação interna-externa cumpre um papel claro: enfraquecer a legitimidade do STF, criar pânico institucional e preparar o gatilho para a aplicação da ordem executiva. É a guerra híbrida em tempo real, na qual discursos domésticos se combinam a ameaças internacionais para minar a democracia.
Só quero que o Alexandre agora prenda um cidadão americano e me faça mais feliz. https://t.co/2QiqXKOYV7
— Paulo Figueiredo (8) (@pfigueiredo08) September 5, 2025
Trump evita atacar Lula diretamente porque sabe que isso fortaleceria o soft power do presidente brasileiro. O alvo é o Estado, não a pessoa: o STF, as instituições, a economia. Lula, ao contrário, projeta-se globalmente como símbolo de soberania, multipolaridade e estabilidade. O contraste é brutal: de um lado, o hard power coercitivo de Washington; do outro, o soft power de Lula, sustentado em legitimidade histórica e articulação internacional. É essa disputa de ethos que define o embate de 2026: unilateralismo contra multipolaridade, intimidação contra soberania.
O coração da disputa está na soberania informacional. Enquanto os EUA blindam seus agentes para operar livremente nas plataformas digitais, o Brasil busca regular esse espaço, afirmando que a democracia não pode ser refém de algoritmos estrangeiros. O STF e Moraes viraram alvos porque ousaram enfrentar esse campo decisivo. A guerra híbrida de 2026 já começou: tarifas, sanções, lawfare, fake news, narrativas fabricadas de “censura” e até a projeção de uma terceira via artificial para dividir a esquerda. O ethos da ordem executiva é justamente este: legalizar a intimidação, paralisar instituições e corroer a democracia antes que o povo vote.
A conclusão é inequívoca: ao transformar proteção em arma, Trump institucionalizou a coerção global. O decreto é a confissão escrita de que os EUA se colocam acima do direito internacional e de qualquer soberania nacional. Mas o ethos da resistência também se manifesta: Lula, o STF e o Brasil oferecem ao mundo a alternativa da soberania informacional e da multipolaridade. A encruzilhada de 2026, portanto, não é apenas eleitoral — é civilizatória. Entre o golpe e a esperança, cabe ao Brasil provar que ainda existe espaço para construir o futuro sem pedir licença a Washington.