
O prefeito de São José dos Campos (SP), Anderson Farias (PSD), cancelou a participação da jornalista Milly Lacombe na Festa Literomusical marcada para este fim de semana. A decisão veio após pressão de vereadores da direita local, que divulgaram trechos de uma entrevista concedida por Milly ao podcast Louva Deusa. Nos cortes compartilhados nas redes sociais, a jornalista afirma que a família tradicional, branca e conservadora é um “núcleo produtor de neuroses”, “é um horror” e “é a base do fascismo, falemos a verdade”.
Em vídeo publicado pelo vereador Zé Luiz (PSD), Farias declarou que tomou a decisão depois de ter sido informado sobre as falas de Milly. O prefeito ligou para a entidade responsável pelo evento, a Associação para o Fomento da Arte e da Cultura (AFAC), e determinou a retirada da jornalista da programação. Ela participaria da mesa de abertura ao lado de Xico Sá e do escritor Cuti.
Milly Lacombe maravilhosa. Diz que a família tradicional brasileira fomenta neurose e f4scismo. E qual a reação dos defensores da família tradicional, como o Nikolas? Espalhar a neurose da Milly ser c0munista e atacá-la nas redes como um f4scista faria. Os tontos lhe deram razão. pic.twitter.com/luoaOXDLwq
— GugaNoblat (@GugaNoblat) August 31, 2025
“A gente respeita, sem nenhuma crise, sem nenhuma crítica, mas não podemos permitir nem admitir dentro de um espaço público pessoas que tenham esse pensamento com relação à família […] Aquilo lá realmente é uma fala irresponsável, inconsequente quando a gente fala principalmente da questão cristã em um país como o Brasil, apesar de ser um país democrático. Então, por um país democrático, com todo o respeito, ela não participará mais do evento do Vicentina Aranha”, afirmou o prefeito.
Quero ser claro: a apresentação da ativista Milly Lacombe em São José foi cancelada. Cultura deve unir, não dividir. Nossos espaços não serão usados como palanque contra a família e valores da cidade. Já fiz isso no passado, quando cancelei o cachê da Maria Gadu por ter pedido…
— Anderson Farias (@andersonsjc_) September 16, 2025
A exclusão de Milly gerou reações imediatas. A jornalista classificou como “desonestos” os cortes de sua entrevista, alegando que o conteúdo foi retirado de contexto.
“É triste saber que uma manifestação por respeito e inclusão dos jovens LGBT+ e da dignidade das mulheres no núcleo familiar possa ser ofensiva para tanta gente”, disse. Em sua participação no podcast, ela abordou o impacto das estruturas familiares tradicionais sobre jovens LGBT+, destacando que a exclusão e o preconceito vividos nesse ambiente afetam profundamente suas vidas.
O episódio também ganhou dimensão política. O vereador Thomaz Henrique (PL) usou as falas de Milly para associá-la ao assassinato do influenciador estadunidense de extrema direita Charlie Kirk, ocorrido na semana passada.
“São discursos como o da jornalista que ajudam a puxar o gatilho contra pessoas como Charlie Kirk”, publicou em suas redes. O paralelo feito pelo vereador ampliou o debate sobre liberdade de expressão, polarização política e instrumentalização de declarações em disputas ideológicas.
Não é a primeira vez que a administração municipal toma medidas semelhantes. Às vésperas das eleições de 2022, o prefeito pediu o cancelamento do cachê da cantora Maria Gadú no mesmo festival, após a artista declarar apoio ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Nesta terça-feira (16), Farias retomou o episódio em um novo comunicado e reforçou sua posição. Para ele, a cultura de São José dos Campos não pode se tornar “palco político-ideológico”.
Milly, por sua vez, rebateu o cancelamento afirmando que pensamentos divergentes fazem parte do debate público, mas o silenciamento não. “A liberdade de expressão foi publicamente cancelada por aqueles que ainda fingem defendê-la ardentemente”, disse. A jornalista também ressaltou a necessidade de ampliar o conceito de família no Brasil.
“A família pode ser espaço de amor, mas também de insegurança para muitos de nós que não nos encaixamos, e uma sociedade madura saberia falar sobre isso”, declarou. “Pessoas trans, gays, marginalizadas e dissidentes não cabem na atual representação da família tradicional e isso precisa ser encarado. Devemos alargar o conceito, incluir todo mundo”.