Lula na ONU: relembrando a verdade histórica e desafiando a diplomacia falida sobre a Palestina

Atualizado em 22 de setembro de 2025 às 22:45
Lula discursando, sério, sem olhar para a câmera, em foto feita de cima
Lula (PT) na Conferência Internacional de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão da Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados – Divulgação/PR

Por Edward Magro

A maioria dos pronunciamentos diplomáticos costuma ser entediante: acumulam fórmulas gastas, agradam aos ouvintes, mas raramente iluminam. São discursos sem graça e desnecessários. Poucos contêm alguma verdade; menos ainda revelam sinceridade. Há, no entanto, aqueles que, assim que ditos, escapam ao instante e se instalam na história.

Transbordam do espaço restrito em que foram proferidos, ultrapassam a rigidez e a formalidade da diplomacia e se insinuam como murmúrios subterrâneos que desvelam verdades sufocadas.

Palavras há muito afogadas pelo poder encontram passagem nos interstícios do discurso e se apresentam à humanidade, lembrando-nos de que o convívio internacional deve ser regido pelo respeito e que a política pode, com delicadeza e verdade, preservar os laços afetivos que nos unem a todos.

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido há poucas horas na sede da ONU em Nova York, durante a Conferência Internacional de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados, pertence a essa categoria rara.

Não foi simples registro protocolar entre tantos, mas gesto de humanidade que devolve à cena internacional a possibilidade da justiça, num tempo em que convenções e fórmulas esgotadas parecem obscurecer a sensibilidade.

A fala de Lula iniciou-se com uma lembrança necessária, que atribui ao Brasil uma responsabilidade histórica no tema dos dois estados na Palestina: o papel do diplomata brasileiro Osvaldo Aranha na sessão de 1947 que aprovou o plano de partilha.

Ao trazer esse episódio à memória, o presidente não se deteve em orgulho nacional, mas expôs a distância entre o projeto de dois estados e a permanência de apenas um, sustentado por privilégios militares e políticos, enquanto o outro permanece privado de sua própria existência. Essa evocação não foi ornamento: foi denúncia de uma ferida antiga, ainda aberta, incapaz de cicatrizar.

Em seguida, o presidente abordou um ponto decisivo para a sobrevivência da ONU: o poder de veto. Não o apresentou como mero mecanismo burocrático, mas como uma arma funcional de paralisia ética, capaz de corroer o multilateralismo em sua essência.

Criada para impedir a repetição dos horrores da Segunda Guerra Mundial, a organização tornou-se refém de um artifício que permite à violência perpetuar-se sob a aparência de legitimidade. Lula recordou, com firmeza serena, que esse veto não bloqueia apenas resoluções: compromete a própria razão de ser da instituição.

Lula lembrou que é o poder de veto — embora não tenha citado, referia-se possivelmente aos Estados Unidos, à França e ao Reino Unido — que, até hoje, inviabilizou todas as tentativas de solução para a criação do Estado Palestino.

Nesse ponto, de gravidade extrema, Lula retomou a definição clássica de Estado — território, população, governo — e a transladou para a realidade palestina. Cada um desses pilares tem sido minuciosamente erodido. O território se reduz sob o avanço de assentamentos ilegais; a população é expulsa, deslocada ou exterminada em processos que ele nomeou, sem hesitação, como limpeza étnica; o governo é fragilizado, privado de autoridade efetiva.

Nesse momento, o discurso ultrapassou o plano estritamente político e se converteu em testemunho, quase ato de registro histórico, ao adotar a palavra que muitos evitam: genocídio.

A coerência do gesto se evidenciou quando anunciou que o Brasil passaria a integrar o processo iniciado pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça. Não foi adesão ideológica, mas fidelidade a princípios jurídicos e morais.

A condenação ao terrorismo do Hamas esteve presente, clara e firme, mas Lula soube distinguir entre o repúdio a tais atos e a recusa em aceitar a justificativa de massacres sistemáticos contra a população civil. Nenhum argumento pode sustentar o assassinato de milhares de crianças, a destruição de quase todos os lares palestinos, o uso da fome como instrumento de guerra.

Entre as passagens mais comoventes, uma frase iluminou-se pela singeleza e pela força da imagem da fragilidade humana: “A fome não aflige apenas o corpo, ela estilhaça a alma.” Nela, a fome deixa de ser estatística, número ou abstração; torna-se ferida íntima, ruptura espiritual. É nesse instante que a fala transcende a denúncia e alcança a compaixão, devolvendo ao debate internacional uma proximidade que os discursos habituais há muito perderam.

O desfecho voltou-se para o horizonte da coexistência. Israel e Palestina, lembrou o presidente, têm ambos o direito de existir. Sem um Estado palestino, não haverá paz, mas apenas a repetição de uma violência desigual que enfraquece a credibilidade da comunidade internacional.

Essa lembrança adquire peso particular no presente contexto: nos últimos dias, Canadá, Reino Unido, Austrália, Portugal, França, Bélgica, Luxemburgo, San Marino e Malta reconheceram formalmente o Estado da Palestina, somando-se a uma maioria já expressiva de países-membros da ONU. Cada nova adesão reforça o gesto de 2010, quando o Brasil se antecipou e acolheu oficialmente a soberania palestina.

Cada uma dessas adesões recentes carrega a marca da incisiva fala de Lula, proferida em 8 de fevereiro de 2024, durante entrevista coletiva após a Cúpula da União Africana, em Adis Abeba, Etiópia: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus.”

Foi ali que o mundo recebeu o choque de realidade que desnuda a limpeza étnica em curso na Palestina e, em particular, o genocídio palestino em Gaza.

Ao propor a criação de um órgão inspirado no comitê que acompanhou o fim do apartheid sul-africano, Lula converteu experiência histórica em projeto de futuro. Foi como afirmar que, se um regime de opressão pôde ser derrubado pela persistência da solidariedade internacional, também a Palestina poderá ver nascer seu Estado por meio de vigilância contínua e compromisso partilhado.

Na conclusão, o presidente brasileiro ofereceu mais que um discurso: deixou uma convocação serena. Sua fala recorda que o multilateralismo só terá sentido se ousar enfrentar os crimes mais evidentes do nosso tempo. Do contrário, permanecerá condenado a ser uma assembleia estéril, incapaz de proteger aqueles para os quais foi criada.

O que fica, após a escuta ou leitura desse pronunciamento, é a convicção de que ainda é possível falar de política com clareza, ternura e rigor. Não houve ali exaltação vazia, nem retórica inflada: houve uma voz que, mesmo cercada de formalidades diplomáticas, ousou restituir à cena internacional um pouco da humanidade que tantas vezes lhe falta.