‘Dosimetria’: a política pode revogar o Direito e a lei da gravidade? Por Lenio Streck

Atualizado em 26 de setembro de 2025 às 12:11
Fachada do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Foto: Divulgação

Por Lenio Luiz Streck

Pensei em não mais escrever sobre este tema. Mas, como dizia Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente — os cientistas — para desvelar as obviedades do óbvio. Porque o óbvio se esconde. Além disso, o assunto corre o risco de ficar perigosamente “patrimonializado”, pelo qual o Brasil se acostumou a fazer “acordões”, uma vez que paira no ar suspeita (não desmentida) de que o governo concordaria com a “nova dosimetria” (sic) e até haveria acenos por parte do Supremo Tribunal Federal, face a uma entrevista recente do presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso.

A ver tudo isso.

De toda sorte, cumprindo meu dever cívico, explicarei outra vez — agora em 12 pontos — porque o projeto da “dosimetria” (sic) é inconstitucional e inviável tecnicamente:

1. O projeto da dosimetria, pretendendo reduzir penas já impostas, é inconstitucional porque isso é tarefa do Judiciário por meio de revisão criminal;

2. Para que um condenado tenha sua pena reduzida é necessário que o parlamento faça uma lei reduzindo a pena do crime (tipo penal), que alcançará a todos os condenados e os processados por esse tipo de crime; portanto, a única saída é reduzir as penas dos crimes pelos quais os golpistas foram condenados;

3. Só que há um problema de constitucionalidade nisso. Explico: o legislador não é livre para descriminalizar ou reduzir ou aumentar penas. Isto porque ele deve obedecer a alguns parâmetros que chamamos de proporcionalidade, isonomia e dever de proteção do bem jurídico;

4. Isto é: se pretendem reduzir pela metade as penas de golpe e abolição do Estado, de pronto há a violação da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot), princípio adotado de há muito pelo STF. Afinal, ninguém em sã consciência vai concordar que a democracia estará mais protegida que agora se reduzirem a pena dos crimes de tentativa de golpe e abolição para um patamar menor ou semelhante a um furto praticado por duas pessoas. Seria engaçado, se não fosse trágico. Poderemos fechar as faculdades e rasgar todos os livros em face do inusitado. Seia como reduzir as penas do homicídio para a metade ou um terço, fazendo com que seja mais grave adulterar chassi de automóvel que matar alguém ou tentar matar. Qualquer aluno de faculdade saberá fazer essa equação e dirá que é inconstitucional. Ora, ora, uma tentativa de golpe de Estado ter o desvalor de um furto de botijão de gás feito à noite ou por duas ou três pessoas? Ou adulteração de chassi de carro?

O ministro Luís Roberto Barroso. Foto: Divulgação

5. Para a nossa autoestima de brasileiros: se cortarem pela metade as penas dos crimes de golpe e abolição, seremos chacota no mundo, mormente se olharmos para Reino Unido, Canadá e Alemanha, onde a pena pode chegar à de morte, e França e Argentina, onde a pena é perpétua. O que acha disso o Paulinho da F.?

6. Já se pretendem beneficiar os réus condenados pelos crimes de dano, por exemplo, afirmarão que não há problema nenhum em quebrar-destruir bens públicos. Bom, resta a patética alternativa de transformar esses crimes em “bagatela” (contém ironia).

7. Por outro lado, se pretendem “desaplicar” no caso concreto o concurso material de crimes, a inconstitucionalidade será igualmente “chapada”. De novo: legislativo não altera pena aplicada. De todo modo, para não somar as penas de tentativa de golpe e abolição, terão que alterar o Código Penal no específico (na parte do conceito de concurso formal e material, dando-lhe uma redação ornitorrinca). Só que, como efeito colateral, beneficiarão todas as pessoas que estão condenadas por concurso material no sistema penal (ou, no mínimo, causará uma enxurrada de revisões criminais ou Habeas Corpus). Resolverão um problema e criarão milhares. A bancada da bala vai dar um tiro no pé. Colocarão em liberdade justamente os seus alvos preferidos em discursos.

8. Perguntemos ao Paulinho da Força por que ele não quer reduzir pela metade a pena do crime de orcrim? De pronto retiraria da prisão mais de 100 mil pessoas. Paulinho quereria isso? Mas tudo OK para beneficiar os golpistas, reduzindo apenas os “seus” tipos penais.

9. Portanto, Paulinho tem de fazer duas coisas: (i) prestar atenção ao que se diz sobre o parlamento, face ao declínio cotidiano de seu prestígio (pesquisas recentes mostram que mais de 60% acham o parlamento ruim); (ii) examinar tecnicamente a matéria, para não criar embaraços políticos na relação entre os Poderes.

10. Definitivamente, nenhuma lei pode ser editada sem que haja prognose, proporcionalidade, razoabilidade e isonomia. O projeto da “dosimetria” não preenche nenhum desses requisitos. Creiam: assim como não se pode revogar a lei da gravidade (embora negacionistas achem que Newton era um farsante), também não se pode revogar algumas questões técnicas que minimamente sustentam o sistema legal. A diferença é que um negacionista nunca testa a sua crença, porque jamais vai se jogar do décimo andar gritando “Newton, toma essa!”. Já um deputado pode testar o seu negacionismo jurídico. O preço para a sociedade é alto. A crença nas instituições despencará muitos pontos na bolsa de valores institucionais. Se cair mais pontos, pode dar um break.

11. No mais, qualquer redução de penas em abstrato deve ter um fundamento constitucional, isto é, uma razão de política criminal. Qual é a razão para reduzir as dos crimes contra o estado democrático? Simples: atenuar a situação de golpistas. Serve só para eles. E isso não é fundamento algum de política criminal.

12. Nem é preciso discutir política. Qualquer cursinho de Direito for dummies saberia dizer que, assim como um golpe é crime contra a democracia — anistiá-lo, ou “dosimetriá-lo” é absolutamente inconstitucional — porque significa submeter a Constituição a uma tentativa de subversão dela mesma. Nesse caso, porém, é ainda mais patético. Porque o argumento já nem precisa mais ser de hermenêutica, interpretação ou conceito de direito. É pura técnica legislativa. O projeto não é apenas politicamente equivocado: é tecnicamente frágil.

Para dizer com certa lhaneza aquilo que é óbvio. Ou deveria ser óbvio.