
Publicado originalmente no IFZ
Na tarde de ontem, 30 de outubro, no Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou um conjunto de projetos de lei que consolidam, pela via legislativa, políticas de Estado voltadas à agricultura familiar, à alimentação escolar, à priorização de municípios vulneráveis e ao reforço do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Essas medidas traduzem uma estratégia de longo alcance, porque instituem garantias jurídicas e desenham um ambiente institucional mais firme para o enfrentamento da fome e para a sustentabilidade rural.
Ao discursar, Lula lembrou o caráter cooperativo do momento institucional: “Nós estamos chegando próximo aos três anos de governo e eu quero agradecer a todos. Em poucas vezes houve um governo que teve uma relação exitosa com uma Câmara e um Senado como tivemos aqui. Na essência, o Congresso Nacional votou tudo aquilo que a gente precisava que fosse votado. A gente tem que ter o bom senso para entender o que é de interesse das pessoas. Não existe outra possibilidade de combater a pobreza e a fome se essa gente não for incluída no orçamento da União.” Essas palavras capturam o propósito central: inclusão orçamentária como instrumento de justiça social.
Com essas novas leis, programas que antes dependiam de regulação ou portarias governamentais passam a ter força normativa — pronunciamento simbólico de que segurança alimentar não é convênio ocasional, mas política de Estado. Serão agora garantidos, por meio legal, instrumentos como crédito rural adaptado, apoio à comercialização, redução de perdas no campo, e priorização de regiões mais vulneráveis.
Pronaf: da política transitória à estrutura institucional
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) ganha status de política permanente, e isso representa um marco institucional. Em vez de depender de decretos ou diretrizes de governo, passa a integrar o arcabouço jurídico brasileiro como instrumento de Estado, com continuidade garantida.
Nas estatísticas oficiais, o peso da agricultura familiar no Brasil já é expressivo. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 77% dos estabelecimentos agrícolas são familiares, ocupando cerca de 80,9 milhões de hectares — aproximadamente 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários. Esses empreendimentos empregam mais de 10 milhões de pessoas, o equivalente a 67% da mão de obra agropecuária.
A estrutura institucional também está sendo reformulada para beneficiar produtores com restrições financeiras. Em balanço recente, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) anunciou que agricultores familiares do Amazonas poderão acessar R$ 170 milhões em crédito no Plano Safra 2025/2026. Além disso, o governo incluiu a agricultura familiar em fundos garantidores — como o FGO (Fundo Garantidor de Operações), FGI (Fundo Garantidor para Investimentos) e FAMPE (Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas) — para respaldar operações feitas por cooperativas ou produtores com faturamento reduzido.
Outro dado significativo é a ampliação do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), que substituiu a antiga Declaração de Aptidão (DAP). No período recente, o número de CAFs emitidos saltou de 91 mil para mais de 1 milhão, com cerca de 1,5 milhão de registros ativos atualmente. Essa expansão do cadastro significa maior acesso ao Pronaf e aos programas correlatos.
Com o Pronaf elevado à categoria de lei, espera-se que as linhas de crédito rurais se tornem menos sujeitas a instabilidades e cortes orçamentários, favorecendo o planejamento da produção familiar ao longo de diferentes ciclos climáticos e econômicos.
PNAE e PAA: interligando alimentação escolar e estímulo ao produtor local

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) há muito é pilar da nutrição e da política pública no Brasil. Por meio do FNDE, atende cerca de 40 milhões de estudantes matriculados na educação básica, em redes municipais, estaduais e federais, além de escolas mantidas por entidades filantrópicas ou conveniadas.
O modelo vigente previa que 30% dos recursos fossem aplicados na compra direta de alimentos da agricultura familiar, conforme a Lei nº 11.947/2009. Com a nova sanção, esse percentual mínimo sobe para 45%, o que implicará uma injeção extra estimada de R$ 1,5 bilhão por ano diretamente no setor familiar. Esse montante reforçará mercados locais e ampliará o papel da agricultura familiar na merenda escolar.
Outra inovação normativa exige que os gêneros alimentícios entregues ao PNAE tenham prazo mínimo de validade, evitando o envio de produtos próximos ao vencimento — uma forma de dignificar a alimentação escolar. Também serão priorizados, na aquisição, alimentos oriundos de assentamentos da reforma agrária, povos indígenas, comunidades quilombolas e grupos de mulheres organizadas.
A articulação com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) fortalece a lógica de construção de circuitos curtos: produtores familiares vendem diretamente para creches, escolas, hospitais e outros equipamentos públicos, promovendo geração de renda local e reduzindo custos logísticos de transporte e armazenamento.
Além disso, municípios que declararem situação de emergência ou calamidade pública terão preferência na aquisição e distribuição desses alimentos, unindo urgência social com lógica produtiva.
Por fim, no âmbito administrativo, o PNAE também evolui em gestão participativa e transparência. O Sistema de Gestão do PNAE (SIGPNAE) incorporou módulos novos para cadastro de conselheiros da alimentação escolar e para nutricionistas vinculados, com recadastramento obrigatório até 31 de julho. Esses aprimoramentos favorecem o controle social e a fiscalização local.
Priorização de municípios vulneráveis e fortalecimento do Sisan
As novas leis sancionadas também dotam o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) de instrumentos mais robustos para focalizar regiões e populações em situação de vulnerabilidade. Um dos eixos centrais é que municípios que decretarem estado de calamidade pública ou emergência terão prioridade na aquisição e distribuição de alimentos por meio do PAA. Essa medida permite resposta mais ágil e direcionada a áreas afetadas por estiagens, enchentes ou outras adversidades climáticas.
Também foi criada a Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos (PNCPDA), com incentivos à doação e parcerias entre União, estados, municípios e entidades privadas, além da implantação do Selo Doador de Alimentos. Essas ferramentas visam proteger cada elo da cadeia produtiva, da colheita até o consumo, reduzindo perdas que historicamente drenam recursos e prejudicam a segurança alimentar.
Outra inovação é atribuir ao IBGE competência para gerar indicadores de segurança alimentar e nutricional que orientarão políticas do Sisan, abastecendo diagnósticos mais precisos sobre quem precisa e onde. Dessa forma, o Sisan deixa de ser apenas uma abstração normativa e se converte em instrumento de monitoramento e ação territorial.
Essa priorização reflete o reconhecimento de que a fome e a insegurança alimentar não são fenômenos homogêneos — algumas regiões exigem atenção especial, sobretudo no semiárido, na Amazônia e nos territórios mais desfavorecidos.
A concretização da saída do Mapa da Fome e os desafios à frente
Em julho deste ano, a Organização das Nações Unidas reconheceu oficialmente que o Brasil deixou o Mapa da Fome, porque alcançou índice inferior a 2,5% da população em insegurança alimentar grave. Com isso, o país figurou, pela segunda vez, fora da zona de insegurança alimentar severa.

Essa vitória não é casual — é resultado de políticas conjuntas que combinaram programas sociais, crédito ao pequeno produtor, ampliação dos sistemas de monitoração e intervenção emergencial. A recriação do MDA em 2023 foi um passo decisivo nesse processo, reagrupando sob uma única pasta ações relativas à agricultura familiar, à reforma agrária e à segurança alimentar.
Segundo dados recentes, o governo já comprometeu mais de R$ 225 bilhões em crédito rural para a agricultura familiar desde o início deste mandato — soma resultante de vários ciclos do Plano Safra voltados ao setor. Nos últimos lançamentos do Plano Safra, governos estaduais e produtores familiares receberam recursos expressivos para sustentar produção em regiões mais remotas.
Esses elementos reforçam que a saída do Mapa da Fome vai além de um dado estatístico: é reflexo de escolhas políticas fortes, de investimentos continuados e de políticas de coesão territorial. No entanto, os desafios persistem. É necessário consolidar essas leis sancionadas em regulamentos eficientes, evitar gargalos na execução orçamentária, garantir logística adequada nas regiões mais distantes e promover educação nutricional para que os alimentos e iniciativas cheguem com qualidade e aproveitamento real.
Com a elevação dessas políticas à condição de leis, o Brasil dá um salto institucional: não apenas segura conquistas recentes, mas cria bases para avançar. Que essas leis sancionadas sejam o marco de uma trajetória concreta — não de retórica — em que alimento digno e produção familiar caminhem juntas numa sociedade mais igualitária e sustentável.