
Por Washington Araújo
Em minhas muitas viagens pelo mundo — e foram mais de três vezes em mais de 62 países, no intervalo de 1983 a 2024 — amadureci uma convicção inabalável: a única língua que o diabo respeita é, de longe, o húngaro. Isso mesmo. O Ente Mau, com sua astúcia e fluência multinacional, entende significados, linhas e entrelinhas de centenas de idiomas, dialetos e dialetinhos. Mas tropeça, se atrapalha e, se bobear, cai sentado ao ouvir uma frase húngara.
Em Budapeste, portanto, ele se vê vulnerável. Os humanos dali têm, portanto, uma vantagem tática: podem confundi-lo com palavras incompreensíveis. O que, convenhamos, é uma excelente arma de resistência.
Não é exagero. O idioma húngaro é um Everest linguístico. Quem ousa escalá-lo descobre que a gramática parece ter sido escrita por um anjo distraído ou por um demônio meticuloso — há controvérsias.
A pronúncia? Um balé de sons que desafia até as línguas mais flexíveis. O plural não se comporta como plural, os sufixos multiplicam-se como coelhos, e o verbo parece praticar ioga: dobra-se, contorce-se e aparece sempre num lugar diferente da frase. Aprender húngaro é como jogar xadrez tridimensional contra alguém que não avisa quais são as regras.
Dito isso, faz todo sentido que um mestre das palavras tão intraduzíveis tenha levado para casa o prêmio literário mais cobiçado do planeta. László Krasznahorkai — nome que parece conjuração! — acaba de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Um escritor húngaro que escreve frases do tamanho de quarteirões, cheias de curvas, abismos e fendas semânticas. Ler Krasznahorkai é como atravessar um labirinto de espelhos com um copo d’água na cabeça — e chegar ao fim sem derramar uma gota.
A Academia Sueca justificou o prêmio dizendo que sua obra é “convincente e visionária, reafirmando o poder da arte em meio ao terror apocalíptico”. E não é hipérbole. Seus livros têm mais pontos de tensão que uma reunião de condomínio com aumento de taxa. Susan Sontag o chamou de “mestre do apocalipse”. O cineasta Béla Tarr transformou suas histórias em filmes longos, lentos e hipnóticos — e foi aclamado no mundo todo.
Um deles, Harmonias de Werckmeister, nasceu do romance A Melancolia da Resistência, lançado em 1989 na Hungria e apenas em 1998 no mercado de língua inglesa. A trama começa quando um circo chega a uma cidadezinha levando — veja bem — uma baleia empalhada. Sim, uma baleia. Empalhada. Se Franz Kafka estivesse de bom humor e Fyodor Dostoevsky tivesse tomado um café a mais, talvez escrevessem algo assim.

Krasznahorkai tem 71 anos e nasceu em 1954 na pequena Gyula, em plena Hungria comunista. Filho de um advogado e de uma funcionária do Ministério do Bem-Estar Social, foi militar desertor — desertou porque, segundo contou, não suportava ordens absurdas —, tocou piano em banda de jazz e estudou literatura em Budapeste. Seu primeiro romance, Satantango (1985), foi um sucesso instantâneo no país e ganhou uma adaptação cinematográfica de mais de sete horas de duração (sim, sete!). O diabo que se arrisque a ver até o final.
A proeza linguística do escritor vai além da temática sombria. Ele publica romances com um único ponto final em 400 páginas — caso de Herscht 07769, lançado no ano passado nos Estados Unidos. Imagine o leitor — sem fôlego, tateando vírgulas como quem procura oxigênio no deserto — tentando encontrar onde termina uma frase. Não termina.
É como correr uma maratona com os olhos. E ainda assim, quem chega ao fim sente que valeu cada passo. Como ele próprio disse certa vez: “Minhas frases são longas porque o mundo não cabe em sentenças curtas.”
Krasznahorkai não é daqueles que escrevem para agradar algoritmos ou fazer dancinhas literárias no TikTok. Em entrevista ao The New York Times em 2014, disse que buscava “um estilo absolutamente original”, livre de ancestrais literários. Nada de versões recicladas de Kafka, Dostoiévski ou Faulkner.
Ele queria ser ele mesmo: um terremoto sintático. E conseguiu. Como também afirmou: “Eu escrevo para ouvir o silêncio que vem depois do caos.”
Steve Sem-Sandberg, do comitê do Nobel, falou de seu “estilo épico poderoso e musicalmente inspirado”. Musicalmente inspirado — talvez ecoando aquelas noites em que ele tocava piano, enquanto imaginava um mundo prestes a desabar.
Para os húngaros, ver Krasznahorkai receber o Nobel tem um gosto especial. Ele é apenas o segundo cidadão do país a alcançar tal feito, depois de Imre Kertész, laureado em 2002. O húngaro, afinal, é língua de poucos prêmios, mas de profundezas insondáveis. Quando alguém escreve nela com maestria, é como se domasse um dragão — e ainda obrigasse o dragão a recitar poesia.
Há algo de saborosamente irônico nisso: o idioma mais intrincado do planeta servindo de canal para uma literatura que expõe o mundo em ruínas, o colapso das certezas, a beleza que nasce das rachaduras. Krasznahorkai não escreve para confortar. Escreve para inquietar, como quem puxa o tapete da realidade e pergunta: “E agora, o que você vai fazer em queda livre?”.
Em outra de suas frases lapidares, declarou: “O apocalipse não é um evento, é um estado de espírito.”
Nos últimos anos, o Nobel buscou ampliar seu horizonte geográfico e cultural. Ganhou a sul-coreana Han Kang com A Vegetariana, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah e a francesa Annie Ernaux. Agora chega a vez de um homem que escreve em uma língua falada por menos de 13 milhões de pessoas — e compreendida fluentemente, arrisco dizer, por metade delas. O húngaro é o idioma mais parecido com um cofre: poucos têm a chave.
Para quem acha que dominar um novo idioma é fazer o aplicativo de línguas sorrir com coraçõezinhos, recomendo: tente pronunciar Krasznahorkai corretamente. Tente entender um verbo húngaro no passado perfeito condicional. Tente escrever uma carta de amor sem parecer que está invocando entidades. Se conseguir, o diabo vai se levantar e aplaudir de pé.
Por ora, fica a lição de Budapeste: mesmo nas trevas do apocalipse, a arte vence. Mesmo nas frases mais longas que a vida útil de uma lâmpada de poste, a literatura respira. E mesmo quando o idioma é uma muralha, há quem a escale para gritar lá de cima que a imaginação humana é indomável. Krasznahorkai é esse grito. E o húngaro, esse eco que nem o diabo entende — e talvez por isso mesmo respeite.
(Em tempo: Krasznahorkai se pronuncia assim em português — “Cráss-ná-hor-cái”.)