Pesquisa sobre “polarização” mostra retrato de maioria silenciosa no Brasil

Atualizado em 12 de outubro de 2025 às 17:32
Lula e Bolsonaro
Parte dos eleitores de Lula se identificam com a direita e de Bolsonaro com a esquerda, segundo pesquisa
Foto: Reprodução

O relatório Os Invisíveis, fruto da parceria entre More in Common e Quaest, devolve ao debate público um retrato menos dramático e mais inquietante do que costumamos chamar de “polarização”. A partir de quase 10 mil entrevistas presenciais, a pesquisa não apenas descreve seis segmentos sociais distintos. Ela confirma, com números precisos, aquilo que cinco observações críticas já sugeriam. Existe um Brasil majoritário e cansado, outro minoritário e mobilizado, e entre ambos corre um fio que a pesquisa mede mal, mas que explica muito do que vemos nas ruas e nas redes sociais: a manipulação das diferenças e a centralidade dos conflitos de costumes.

A fotografia estatística é direta. Dois grupos pequenos, os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados, representam juntos cerca de 10% da população, mas ocupam o centro da cena pública. Em contraste, as duas categorias identificadas como “invisíveis”, Desengajados e Cautelosos, somam mais da metade do país. O contraste entre ruído e silêncio não é apenas numérico. É também uma diferença de intensidade política. Enquanto menos de 20% dos invisíveis dizem participar de manifestações, entre os militantes essa adesão é majoritária.

A conclusão é clara e relevante. A polarização que sufoca o diálogo e compromete instituições existe, mas não é um fenômeno de massas. A maioria prefere a distância. Esse fato exige uma mudança de lente, pois é preciso ouvir o silêncio como dado político, e não como mera ausência.

Gráfico da pesquisa sobre posse de arma. Foto: Reprodução

A maioria que aparece como “exausta” não surgiu recentemente. Sua forma atual é consequência de um longo processo social que remonta ao período colonial, quando o estabelecimento de estruturas de poder, disposições legais e arranjos econômicos já favorecia a concentração de renda e delegava a poucos a mediação dos direitos. Essa longa história ajuda a compreender por que grande parte da população aceita representações parlamentares que se negam a tributar os mais ricos, a enfrentar privilégios fiscais destinados aos grandes grupos e às igrejas arrecadadoras e, em contrapartida, preferem apostar contra políticas redistributivas e contra os direitos elementares da cidadania.

No cotidiano, essa herança se expressa como acomodação e ceticismo. Muitos se sentem confortáveis com uma política que promete estabilidade de curto prazo ou suficientemente distante para não ser percebida como ameaça às rotinas. O desapego não é necessariamente niilismo. Frequentemente é cálculo: uma forma de viver com o menor custo emocional possível em um cenário de insegurança material.

Gráfico de setores. Foto: Reprodução

Também não há grande novidade em descobrir que existe uma minoria militante. Onde uma maioria se mantém omissa, uma fração ativa tende naturalmente a ocupar o vácuo. O que muda é o poder dessa minoria de definir agenda, pautas e linguagem pública. Os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados compensam sua pouca representatividade numérica com alta capacidade de mobilização, presença intensa em formatos digitais e repetição dramática de narrativas.

O efeito prático é conhecido. A pauta pública acaba moldada por disputas intensas e polarizadas que dizem mais sobre as prioridades de quem grita do que sobre as necessidades da maioria silenciosa.

O dado talvez mais desconcertante da pesquisa é a aparente concordância em alto nível sobre a necessidade de união. O relatório aponta que 83% dos entrevistados acreditam que os brasileiros têm mais em comum do que aquilo que os divide, e que mais de 90% desejam que os partidos trabalhem juntos para resolver os problemas do país. Lido de forma aparentemente positiva, esse consenso revela, na verdade, a profundidade da manipulação discursiva.

Quando a maioria proclama o desejo de entendimentos institucionais, isso não basta para neutralizar as diferenças fundamentais de renda, poder e acesso. As desigualdades materiais e as relações de acumulação capitalista que atravessam a vida social impõem distinções estruturais entre quem vive confortavelmente e quem sobrevive. A retórica do “mais em comum” pode funcionar como sedativo político, pois reduz demandas redistributivas e legitima narrativas que escondem a persistência de privilégios. Em outras palavras, concordância ampla no plano dos valores declarados não resolve o descompasso real entre os interesses dos ricos e as necessidades dos pobres.

O relatório identifica com clareza as chamadas guerras culturais, que envolvem debates sobre gênero, família, religião e moral pública, como o principal motor da polarização observada. É nesse campo que as posições se cristalizam e se tornam incompatíveis. Os extremos convergem para afirmações que não se encontram, como mostram os percentuais opostos sobre direitos humanos, uso de banheiros por travestis ou a avaliação do feminismo.

Entretanto, a pesquisa não se debruça o suficiente sobre uma pergunta política crucial. Se a agenda de costumes produz antagonismos tão pronunciados, quem a escala e com que meios? Em muitos contextos brasileiros recentes, essa agenda foi instrumentalizada por atores religiosos organizados, por redes de comunicação direcionadas e por circuitos digitais que amplificam ansiedades morais. Religiões pentecostais e seus espaços de mobilização congregam mística, redes de afeto e mensagens que conectam identidade, promessa de ordem e opção política. Esse papel estratégico das igrejas não é uma acusação nem uma explicação única, mas uma peça faltante no mapa analítico da polarização. O relatório documenta o que acontece, mas resta investigar melhor quem transforma disputas de costumes em potência política organizada.

O tamanho da amostra, a variedade territorial e a riqueza das variáveis mapeadas permitem derrubar mitos simplistas sobre uma suposta divisão massiva entre dois polos. A diferenciação em seis segmentos ajuda a compreender por que a opinião pública não se comporta como bloco compacto. Reconhecer a presença de uma maioria silenciosa representa um avanço para qualquer projeto de política pública que busque representação real.

O relatório, contudo, tende a tratar o campo moral como origem espontânea de divergências, sem rastrear suficientemente as instituições e as redes que potencializam essas disputas. Também não aprofunda o vínculo entre desigualdade material e adesão a certas narrativas morais. São lacunas importantes se a intenção é propor respostas.

Para formuladores de políticas, a leitura é evidente. Qualquer tentativa de reduzir a polarização só terá eficácia real se combinar duas frentes complementares. De um lado, respostas concretas às urgências materiais, como emprego, renda e serviços, capazes de reverter parte da sensação de abandono. De outro, estratégias de regulação e informação que quebrem os circuitos de amplificação radical. Sem isso, os apelos à união continuarão sendo, em grande medida, mera retórica.

A pesquisa Os Invisíveis reequilibra a vista sobre o país. Ela nos obriga a reconhecer que a polarização brasileira é menos um confronto entre duas massas e mais uma disputa entre minorias vocais e uma maioria que prefere não se reconhecer nas trincheiras. Ao mesmo tempo, o estudo aponta para uma omissão analítica que não pode ser ignorada: a investigação daquilo que mobiliza paixões morais e transforma crenças em capacidade política organizada. Se quisermos voltar a conversar como sociedade, será necessário ouvir os silêncios, enfrentar as desigualdades e mapear os canais que convertem valores em poder. Somente assim o desejo majoritário de convivência poderá se transformar em prática real.