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O relatório Os Invisíveis, fruto da parceria entre More in Common e Quaest, devolve ao debate público um retrato menos dramático e mais inquietante do que costumamos chamar de “polarização”. A partir de quase 10 mil entrevistas presenciais, a pesquisa não apenas descreve seis segmentos sociais distintos. Ela confirma, com números precisos, aquilo que cinco observações críticas já sugeriam. Existe um Brasil majoritário e cansado, outro minoritário e mobilizado, e entre ambos corre um fio que a pesquisa mede mal, mas que explica muito do que vemos nas ruas e nas redes sociais: a manipulação das diferenças e a centralidade dos conflitos de costumes.
A fotografia estatística é direta. Dois grupos pequenos, os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados, representam juntos cerca de 10% da população, mas ocupam o centro da cena pública. Em contraste, as duas categorias identificadas como “invisíveis”, Desengajados e Cautelosos, somam mais da metade do país. O contraste entre ruído e silêncio não é apenas numérico. É também uma diferença de intensidade política. Enquanto menos de 20% dos invisíveis dizem participar de manifestações, entre os militantes essa adesão é majoritária.
A conclusão é clara e relevante. A polarização que sufoca o diálogo e compromete instituições existe, mas não é um fenômeno de massas. A maioria prefere a distância. Esse fato exige uma mudança de lente, pois é preciso ouvir o silêncio como dado político, e não como mera ausência.

A maioria que aparece como “exausta” não surgiu recentemente. Sua forma atual é consequência de um longo processo social que remonta ao período colonial, quando o estabelecimento de estruturas de poder, disposições legais e arranjos econômicos já favorecia a concentração de renda e delegava a poucos a mediação dos direitos. Essa longa história ajuda a compreender por que grande parte da população aceita representações parlamentares que se negam a tributar os mais ricos, a enfrentar privilégios fiscais destinados aos grandes grupos e às igrejas arrecadadoras e, em contrapartida, preferem apostar contra políticas redistributivas e contra os direitos elementares da cidadania.
No cotidiano, essa herança se expressa como acomodação e ceticismo. Muitos se sentem confortáveis com uma política que promete estabilidade de curto prazo ou suficientemente distante para não ser percebida como ameaça às rotinas. O desapego não é necessariamente niilismo. Frequentemente é cálculo: uma forma de viver com o menor custo emocional possível em um cenário de insegurança material.

Também não há grande novidade em descobrir que existe uma minoria militante. Onde uma maioria se mantém omissa, uma fração ativa tende naturalmente a ocupar o vácuo. O que muda é o poder dessa minoria de definir agenda, pautas e linguagem pública. Os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados compensam sua pouca representatividade numérica com alta capacidade de mobilização, presença intensa em formatos digitais e repetição dramática de narrativas.
O efeito prático é conhecido. A pauta pública acaba moldada por disputas intensas e polarizadas que dizem mais sobre as prioridades de quem grita do que sobre as necessidades da maioria silenciosa.
O dado talvez mais desconcertante da pesquisa é a aparente concordância em alto nível sobre a necessidade de união. O relatório aponta que 83% dos entrevistados acreditam que os brasileiros têm mais em comum do que aquilo que os divide, e que mais de 90% desejam que os partidos trabalhem juntos para resolver os problemas do país. Lido de forma aparentemente positiva, esse consenso revela, na verdade, a profundidade da manipulação discursiva.
Quando a maioria proclama o desejo de entendimentos institucionais, isso não basta para neutralizar as diferenças fundamentais de renda, poder e acesso. As desigualdades materiais e as relações de acumulação capitalista que atravessam a vida social impõem distinções estruturais entre quem vive confortavelmente e quem sobrevive. A retórica do “mais em comum” pode funcionar como sedativo político, pois reduz demandas redistributivas e legitima narrativas que escondem a persistência de privilégios. Em outras palavras, concordância ampla no plano dos valores declarados não resolve o descompasso real entre os interesses dos ricos e as necessidades dos pobres.
O relatório identifica com clareza as chamadas guerras culturais, que envolvem debates sobre gênero, família, religião e moral pública, como o principal motor da polarização observada. É nesse campo que as posições se cristalizam e se tornam incompatíveis. Os extremos convergem para afirmações que não se encontram, como mostram os percentuais opostos sobre direitos humanos, uso de banheiros por travestis ou a avaliação do feminismo.
Entretanto, a pesquisa não se debruça o suficiente sobre uma pergunta política crucial. Se a agenda de costumes produz antagonismos tão pronunciados, quem a escala e com que meios? Em muitos contextos brasileiros recentes, essa agenda foi instrumentalizada por atores religiosos organizados, por redes de comunicação direcionadas e por circuitos digitais que amplificam ansiedades morais. Religiões pentecostais e seus espaços de mobilização congregam mística, redes de afeto e mensagens que conectam identidade, promessa de ordem e opção política. Esse papel estratégico das igrejas não é uma acusação nem uma explicação única, mas uma peça faltante no mapa analítico da polarização. O relatório documenta o que acontece, mas resta investigar melhor quem transforma disputas de costumes em potência política organizada.
O tamanho da amostra, a variedade territorial e a riqueza das variáveis mapeadas permitem derrubar mitos simplistas sobre uma suposta divisão massiva entre dois polos. A diferenciação em seis segmentos ajuda a compreender por que a opinião pública não se comporta como bloco compacto. Reconhecer a presença de uma maioria silenciosa representa um avanço para qualquer projeto de política pública que busque representação real.
O relatório, contudo, tende a tratar o campo moral como origem espontânea de divergências, sem rastrear suficientemente as instituições e as redes que potencializam essas disputas. Também não aprofunda o vínculo entre desigualdade material e adesão a certas narrativas morais. São lacunas importantes se a intenção é propor respostas.
Para formuladores de políticas, a leitura é evidente. Qualquer tentativa de reduzir a polarização só terá eficácia real se combinar duas frentes complementares. De um lado, respostas concretas às urgências materiais, como emprego, renda e serviços, capazes de reverter parte da sensação de abandono. De outro, estratégias de regulação e informação que quebrem os circuitos de amplificação radical. Sem isso, os apelos à união continuarão sendo, em grande medida, mera retórica.
A pesquisa Os Invisíveis reequilibra a vista sobre o país. Ela nos obriga a reconhecer que a polarização brasileira é menos um confronto entre duas massas e mais uma disputa entre minorias vocais e uma maioria que prefere não se reconhecer nas trincheiras. Ao mesmo tempo, o estudo aponta para uma omissão analítica que não pode ser ignorada: a investigação daquilo que mobiliza paixões morais e transforma crenças em capacidade política organizada. Se quisermos voltar a conversar como sociedade, será necessário ouvir os silêncios, enfrentar as desigualdades e mapear os canais que convertem valores em poder. Somente assim o desejo majoritário de convivência poderá se transformar em prática real.