A bala de borracha sempre foi a expressão do fascismo. Por Moisés Mendes

Atualizado em 18 de outubro de 2025 às 21:01
Guardas municipais de Porto Alegre durante operação conjunta de segurança. Foto: Ana Terra Firmino/ CMPA

Originalmente publicado em Extra Classe

Atiraram com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo e borrifaram spray de pimenta no povo, no pátio da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. O que o povo poderia estar fazendo naquela quarta-feira, dia 15, para ser contido com tiros e gases?

O povo estava tentando entrar na Câmara, para dizer que é contra projetos que contrariam seus interesses. Um projeto entrega o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae) às empresas e o outro altera o Código Municipal de Limpeza Urbana, ameaçando as atividades dos catadores de lixo.

No centro da repressão – com pelo menos cinco vereadores feridos e um deputado, o ex-ministro e ex-vice-governador Miguel Rossetto –, está a presidente da Câmara, Comandante Nádia, do PL de Bolsonaro.

É coronel da reserva da Brigada Militar, a PM do Rio Grande do Sul, e apresenta-se como comandante. É inspirada, pela natureza da sua formação e sua história de vida, pela imposição de quem age pela força e pela coerção em nome da lei.

É assim mesmo. Policiais militares têm o dever da ação ostensiva. Existem pela capacidade de se impor com presença física e suporte de equipamentos, incluindo balas de borracha. A violência estará sempre por perto de um policial da PM. É no mundo todo.

Comandante Nádia já disse, e eu ouvi ao acaso, no rádio do carro, que orienta sua conduta como política pelo que aprendeu na BM. Disse e eu ouvi: quem não respeita a democracia não merece estar em cargos públicos.

Disse que respeita as decisões da maioria e que os processos legais também devem ser respeitados. E também já disse, e eu ouvi, que a base da sua conduta vem do que aprendeu nos quartéis, onde foi orientada a agir com correção.

A comandante está certa e está errada. Está certa por exaltar seu histórico como militar e atribuir à sua trajetória o que é na vida pública. Mas está errada por achar que condutas militares possam aconselhar atitudes políticas de ocupantes de cargos públicos nas democracias.

Não aconselham ou não deveriam aconselhar. Muito menos em atividades parlamentares que expressam representação popular. PMs podem até ser treinados para mediar e dialogar, mas não é essa a atribuição de policiais fardados. Em lugar nenhum.

Não é tarefa de policiais militares, nem de militares das três forças armadas. Tanto que as PMs são consideradas forças auxiliares reservas do Exército. Está na Constituição. PMs devem agir como militares.

Toda a atividade política, do passado remoto ou recente, que envolva militares, tem como marca o exercício da força, muitas vezes da violência e tantas vezes de ações criminosas de lesa humanidade. Foi o que aconteceu na ditadura iniciada em 64.

Estudantes em protesto contra a ditadura militar. Foto: reprodução

O primeiro golpe de Estado no Brasil aconteceu em 1889. Foi um golpe militar. Os liderados pelo marechal Deodoro não estavam construindo a democracia pós-monarquia, mas derrubando um governo sob o pretexto da proclamação da República.

O que aconteceu em 1889 foi um golpe. Os que tomaram o poder foram militares golpistas medíocres. Assim como foram medíocres, arbitrários, violentos e criminosos todos os militares que se envolveram em atividades políticas contra a democracia.

Sabe-se, no caso de Porto Alegre, que foi a comandante Nádia quem acionou o que chamam de protocolo de segurança (é o mesmo nome usado para reprimir aposentados na Argentina), para impedir que o povo entrasse na Câmara.

Acionou a Guarda Municipal em nome de normas de segurança e por dever como autoridade, porque o recinto estava lotado. Se o presidente da Câmara fosse outro, e não uma militar, o protocolo teria sido acionado?

Por que jogar bombas em pessoas desarmadas e num grupo relativamente pequeno, como mostram as imagens? O protocolo não prevê outras medidas de contenção para afastar quem possa estar ameaçando a segurança de um lugar público?

No Chile, em 2019, em nome da contenção, mais de 400 jovens, principalmente mulheres, perderam um olho (alguns perderam os dois) por causa da repressão dos Carabineiros e suas balas de borracha. Eles protestavam nas ruas contra o governo e pediam uma nova Constituição, que no fim nem foi elaborada.

Mas foi a partir desses episódios que os Carabineiros, a polícia violenta de Pinochet, uma das mais criminosas do mundo, foi proibida de usar balas de borracha.

Foi a partir de um tiro de uma bomba de gás, no centro de Buenos Aires, que explodiu na cabeça do fotógrafo Pablo Nahuel Grillo, que a Argentina se levantou contra o uso de bombas e balas de borracha pela Gendarmeria do governo fascista de Javier Milei.

Quem acompanhou esses casos pode identificar semelhanças assustadoras nos cenários desses episódios com o que aconteceu em Porto Alegre. Os Carabineiros chilenos e a Gendarmeria argentina são forças policiais fardadas federais de ação ostensiva e repressiva nas ruas.

Quem olha os Carabineiros e os soldados da Gendarmeria, assim com os integrantes da Guarda Nacional da Bolívia, para ficar com outro exemplo, vê que eles têm semelhanças, no fardamento pesado, nos equipamentos e capacetes para ações violentas e no porte físico dos policiais. E agem do mesmo jeito, com toda violência possível.

Mas todos integram tropas federais que atuam há décadas nesses países como forças repressoras. A repressão em Porto Alegre, e esse é o detalhe assustador, foi exercida pela Guarda Municipal. Não foi nem pela PM da comandante Nádia.

Descobrimos, e eu não sabia, que a Guarda Municipal tem uma força especial que se veste e se comporta como as guardas federais ostensivas que prosperaram nas ditaduras. E agora usa armas pesadas para conter o povo que pode ‘invadir’ a Câmara de Vereadores.

A Guarda, que tem a missão de defender os bens públicos do município e contribuir para que se mantenha a ordem em espaços públicos de Porto Alegre, agora é força repressora ostensiva com espingardas que lançam balas de borracha e gás lacrimogêneo.

Tudo porque, por decisão do Supremo, guardas municipais têm poder de polícia e podem agir armadas. Os guardinhas podem virar uma versão verde-amarela dos carabineiros chilenos.

Em São Paulo, o governo de Tarcísio de Freitas comprou armas para abastecer guardas municipais de todo o Estado, como se tivesse pressa em formar milícias controladas pelas prefeituras e aliadas da PM estadual.

A questão da segurança é um dos dramas nacionais, e a repressão a qualquer custo é acionada em seu nome. As guardas estão inseridas nesse contexto de militarização da política e também da educação, principalmente em São Paulo.

O que aconteceu no dia 15 em Porto Alegre pode ter sido a inauguração da Guarda Municipal como força a ser mobilizada para atirar nos cidadãos que não usam armas? Sob o argumento da imposição da ordem?

Se foi, estaremos diante de uma situação em que forças sob o controle da extrema direita no poder farão o que bem entendem – se o povo, as forças da política, a sociedade organizada, o Ministério Público e a Justiça permitirem. Há muito mais do que balas de borracha voando nos ares de Porto Alegre.

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/