
O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, foi visto na semana passada em Reykjavík, na Islândia, durante um jantar no restaurante Vitabar, acompanhado do islandês Kristinn Hrafnsson, editor-chefe do WikiLeaks, segundo revelou o jornal islandês Vísir.
Hrafnsson confirmou que Assange está na Islândia em uma curta visita e levantou expectativas sobre seu retorno e o futuro do WikiLeaks. “Talvez esteja se aproximando o momento de algum grande acontecimento — o próximo passo que ele tomará. Mas não quero prometer nada em nome dele”, disse Kristinn ao Vísir.
Fontes do círculo mais próximo do WikiLeaks revelaram a mim que o grupo já vinha se preparando, antes mesmo da libertação de Assange, para um grande retorno com o projeto WikiLeaks TV — um canal audiovisual voltado para temas de política e liberdade de expressão.
De acordo com uma fonte interna, o grupo chegou a manter reuniões com os produtores de Russell Brand, explorando a ideia de um formato de debates e entrevistas. Ex-ator de Hollywood, Brando virou nos últimos anos negacionista das vacinas, adepto de teorias da conspiração e apoiador de Donald Trump
Assange teria se mostrado muito relutante com o projeto, por não se ver como um comentarista político tradicional: ele teme que a iniciativa desvirtue o propósito original do WikiLeaks — a divulgação de documentos e vazamentos, e não a opinião editorial.
Um “dadaísmo político” no coração do WikiLeaks
O que poderia parecer um recomeço promissor carrega o risco imanente de se tornar o fim do próprio WikiLeaks — e até mesmo de Assange como figura idealizada.
Trata-se de uma avaliação pessoal, fundamentada em minha experiência direta, adquirida no convívio com os principais membros e nas dinâmicas internas do grupo, durante minha atuação no núcleo duro da campanha pela libertação de Assange em Londres.
As tensões internas beiram o caos ideológico. Dentro do WikiLeaks coexistem posições políticas imaturas e contraditórias, que vão desde o apoio à Palestina até flertes com discursos da extrema-direita americana — desde que expressem uma retórica “anti-sistema” ou “anti-Estado”.
É um verdadeiro dadaísmo político: um mosaico de ideologias unidas aparentemente pelo ressentimento contra as instituições, e que, involuntariamente, chegam até mesmo a alinhar-se com ideologias fabricadas e de viés imperialista, como o apoio a figuras associadas a revoluções coloridas.
Kristinn Hrafnsson é a única figura dentro do WikiLeaks com consistência política; os demais, inclusive Assange, oscilam entre posições desconexas e, muitas vezes, aderem de forma arrogante a debates de política interna, sem compreender as complexidades locais.
O irmão e o pai de Assange chegaram a participar de eventos da pré-campanha de Donald Trump, e o perfil oficial do WikiLeaks nas redes sociais frequentemente retuíta Elon Musk, inclusive quando este defendeu intervenção dos Estados Unidos no Brasil, para “barrar decisões judiciais” do Supremo Tribunal Federal e impedir a condenação dos golpistas de 8 de Janeiro, bem como de propagadores de ideologias de ódio e desinformação.
Elon Musk — o mesmo que defendeu o golpe de Estado na Bolívia contra o presidente eleito Evo Morales e agora defende o mesmo no Brasil.
O WikiLeaks também retuíta com frequência Glenn Greenwald, inclusive quando ele difunde teorias infundadas de “ditadura” no Brasil ou tenta desacreditar o STF com factoides, facilmente absorvidos pelo público norte-americano, desconhecedor da complexidade política brasileira.
O mais impressionante é que isso ocorreu após o presidente Lula ter recebido os membros do WikiLeaks em Brasília e organizado o encontro entre Stella Assange e o Papa Francisco.
O grupo também foi recebido por cinco presidentes latino-americanos, justamente num momento em que representantes europeus e norte-americanos condenavam ativamente Assange. Por que endossariam posições de intervencionismo americano na politica interna da America Latina?

Durante o tour da America Latina, membros do WikiLeaks chegaram a cogitar visita ao ditador Bukele, no El Salvador. Esse foi um marco para mim da ignorância arrogante do WikiLeaks com relação à imensa e rica história política da America Latina, e do próprio imperialismo americano, no qual se julgam experts.
O apoio do WikiLeaks a posturas intervencionistas americanas na América Latina, expressas por figuras como Elon Musk — em um continente historicamente marcado pela Doutrina Monroe e pelas ditaduras apoiadas pela CIA — é a alegoria mais completa da imaturidade e arrogância ideológica que caracterizam o WikiLeaks.
Essa postura revela a aplicação de uma métrica imperialista de percepção da realidade interna de países fora do ciclo anglo-saxão.
O elogio a Navalny e as contradições de Stella Assange
Em entrevista à seção Life Style do London Evening Standard, Stella Assange, esposa de Julian, comparou o caso do marido ao de Alexei Navalny — figura celebrada pela mídia ocidental como herói anti-Putin, mas que, na Rússia, foi autodeclarado etno-nacionalista e organizador das “Marchas Russas”, de caráter xenofóbico, defendendo abertamente o extermínio de imigrantes.
Em um de seus vídeos, Navalny chegou a afirmar que “precisamos eliminar as moscas e as baratas”, enquanto mostrava homens muçulmanos como “alvos”. Em outro momento, comparou imigrantes ilegais a dentes podres que “precisam ser arrancados com firmeza”.
Stella Assange, em seu círculo, sempre defendeu tais intervenções como estratégicas para a libertação de seu marido. Mas onde começa a coerência e o comprometimento com a causa, e onde termina o oportunismo político?
Nos últimos anos, Stella tem se aproximado de figuras controversas, como Russell Brand e Mark Schellenberger — este último defensor público da ideia de intervenção militar norte-americana no Brasil para “conter a ditadura do Supremo Tribunal Federal”, além de organizador de encontros com a ala mais esquizofrênica do bolsonarismo.
A questão que se impõe é: quais são, afinal, os verdadeiros compromissos éticos do WikiLeaks?
Talvez nem eles mesmos saibam — foi essa, ao menos, a minha impressão mais honesta, depois de ter participado do núcleo íntimo da campanha pela libertação de Julian Assange.
A plataforma como palco de uma crise
O projeto WikiLeaks TV, apoiado por Kristinn Hrafnsson e outros membros em busca de um novo destino, pode se tornar o palco onde essas contradições explodam diante das câmeras.
A exposição televisiva pode revelar o quanto o grupo se fragmenta entre libertários dogmáticos, pregadores do individualismo e defensores da liberdade de expressão como princípio absoluto e sem limites, apoiando-se em teóricos conspiratórios e figuras do anti-sistema.
O WikiLeaks nasceu como um espaço de transparência e denúncia, e seu legado é revolucionário e indelével.
Mas vale a pena viver entre a nostalgia do que se foi e se reinventar como algo que nunca se propôs a ser — mesmo que isso signifique trair seu legado?