
POR GABRIEL SIQUEIRA, jornalista, analista de dados e doutorando em Administração pela UFSC, com mais de 20 anos de experiência em organizações socioambientais
A Pré-COP30, realizada em Brasília nos dias 13 e 14 de outubro, chegou ao fim, e a mídia tradicional, com sua habitual superficialidade, apressou-se em decretar a ausência de anúncios bombásticos. Faltou-lhe percepção para entender o que realmente estava em jogo: um minucioso e silencioso trabalho de xadrez diplomático.
Longe dos holofotes, a diplomacia brasileira fez o que deveria — mapeou o terreno minado das negociações climáticas globais, identificou onde estão os “pré-consensos” e, com notável franqueza, expôs as “linhas vermelhas” que separam o discurso vazio da ação real. Enquanto isso, do lado de fora das reuniões oficiais, os guardiões da floresta mandaram um recado direto aos barões do petróleo e aos financistas da Faria Lima e de Wall Street: a “implementação” só terá algum significado se vier acompanhada de justiça territorial, financiamento direto para quem está na linha de frente e o fim definitivo da era dos combustíveis fósseis.
O xadrez diplomático: avanços reais em meio ao caos global
Enquanto a grande imprensa se perdia em análises rasas, a diplomacia brasileira fazia o trabalho de base. Em um momento de “pior cooperação internacional possível” — nas palavras do pesquisador André Castro Santos, do LACLIMA — o Brasil conseguiu algo raro: fazer países com agendas opostas sentarem à mesa e reconhecerem, pelo menos no papel, a urgência de temas como adaptação climática e novos instrumentos de financiamento.
O embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30, foi sincero ao admitir que a reunião serviu para identificar as “linhas vermelhas” de cada país, expondo os impasses que travam o avanço real: financiamento e combustíveis fósseis. Essa sinceridade é um ativo em um universo multilateral acostumado a discursos vazios.
Um dos movimentos mais ousados veio da ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva. Diante de 72 ministros, ela defendeu que a COP30 ajude a “trilhar” o caminho para “critérios globalmente consensuados” para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. A fala é estratégica: como o tema está fora da agenda formal por resistência dos petroestados, Marina busca iniciar um “mapa do caminho” para o fim da era fóssil, comparando o desafio à luta contra o desmatamento, que um dia também pareceu impossível.
O Brasil também propôs um “mutirão global”, resgatando o espírito colaborativo do Diálogo de Talanoa, e inovou na gestão da chamada “Agenda de Ação” ao exigir indicadores para as 423 iniciativas de ação climática mapeadas — uma tentativa clara de frear o carrossel de promessas vazias que assombra as COPs. Cerca de 300 iniciativas de conferências passadas simplesmente foram descontinuadas, um cemitério de boas intenções que ninguém gosta de mencionar. Se depender da presidência brasileira da COP30, acabou a festa do greenwashing.
O país também lançou a proposta de uma resposta global a incêndios florestais, elevando o tema à prioridade internacional. Mas o verdadeiro teste da presidência brasileira não está no que foi dito em Brasília, e sim no que será decidido em Belém: como transformar “pré-consensos” em acordos vinculantes, com prazos, recursos e mecanismos de fiscalização que funcionem.
A sociedade civil não está convencida (e tem razão para isso)
Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa, resumiu o sentimento geral: há um “ambiente construtivo”, mas a urgência da crise climática não combina com o ritmo das negociações. Anna Cárcamo, do Greenpeace Brasil, foi ainda mais incisiva: “Não existe como falar de COP da implementação se não tivermos os meios para isso”. E os meios, no caso, têm nome e sobrenome — financiamento climático real, em escala e acessível.
Os seis eixos entregues pela sociedade civil à presidência da COP30 — resultado do evento O Caminho para Belém — não são apenas uma carta de intenções. São um roteiro técnico e político para evitar que Belém vire mais uma COP de promessas esquecidas. Entre os pontos centrais: redução de emissões com equidade, transição energética justa, um pacote robusto de adaptação e, claro, o elefante na sala que ninguém da diplomacia quer encarar — a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis.
É aqui que o Brasil enfrenta sua maior contradição: como liderar a transição global enquanto expande a fronteira petrolífera? Movimentos sociais nas ruas de Brasília não deixaram passar. As manifestações cobraram coerência entre discurso e prática. A Pré-COP Sindical, organizada por centrais como a CUT, trouxe outra camada essencial: a transição justa não pode ser uma “agenda verde” do capital, mas um projeto que garanta emprego digno e protagonismo da classe trabalhadora. Sem isso, a mudança climática só aprofundará desigualdades.
A voz que vem da floresta: “Território é vida, é clima, é resistência”
Fora dos salões com ar-condicionado, a realidade impunha sua urgência. Mais de 300 representantes de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais se mobilizaram e fizeram suas reivindicações. A frase que ecoou foi: “Território é vida, é clima, é resistência.” Para eles, a crise climática não é uma abstração — é a seca do rio, o avanço do fogo, a contaminação por mercúrio. Entregaram Cartas Políticas com soluções baseadas em milhares de anos de relação equilibrada com a floresta — e eram exigências de direitos historicamente negados.
A primeira e mais importante reivindicação: que a demarcação e titulação de territórios tradicionais sejam incluídas nas metas climáticas oficiais do Brasil (as NDCs). Isso não é retórica identitária; é ciência aplicada. Territórios demarcados têm taxas de desmatamento até dez vezes menores que áreas desprotegidas. Proteger a floresta começa, literalmente, garantindo que quem a defende tenha seus direitos assegurados.
A segunda demanda dos povos tradicionais também é clara: financiamento climático direto e desburocratizado. Os povos da floresta estão cansados da “tutela” do Norte Global que intermedeia recursos, define prioridades e, no fim, perpetua uma relação colonial. Como disse a liderança Shirlei Arara, do povo Arara: “Não queremos outros falando de nós. Esperamos que nós mesmos possamos falar sobre nós.”
O governo Lula, sob a liderança de Sonia Guajajara à frente do Ministério dos Povos Indígenas, criou o “Círculo dos Povos” e promete a maior participação indígena da história das COPs. São avanços institucionais importantes. Mas os povos da floresta não querem apenas ser ouvidos — querem poder de decisão. E querem ver suas propostas refletidas nos textos finais de Belém, não apenas em eventos paralelos para foto.
O abismo do financiamento: a dívida histórica que o Norte insiste em não pagar
A hipocrisia do Norte Global, como sempre, esteve presente. Enquanto cobram metas da Amazônia, seus países seguem subsidiando a indústria fóssil. Muitos produtores de petróleo interpretam a lista de ações do Acordo de Paris — que inclui “transitar para longe dos combustíveis fósseis” — como um “menu” do qual escolhem o que lhes convém.
O “abismo do financiamento” é a materialização dessa injustiça. Dados revelados na Pré-COP são um soco no estômago: apenas 10% do financiamento climático global chega aos países emergentes, e míseros 5% vão para adaptação. Essa é a dívida histórica que os países ricos se recusam a pagar. A proposta do roteiro “Baku-Belém”, que busca destravar US$ 1,3 trilhão anuais, será o teste de fogo para a credibilidade de todo o processo.
Belém dirá se a implementação é real ou apenas retórica
A Pré-COP de Brasília cumpriu seu papel: organizou o campo de batalha diplomático. A presidência brasileira demonstrou habilidade ao criar uma estrutura para a cooperação em tempos de crise do multilateralismo. Mas o sucesso da COP30 será medido pela coragem de preencher essa estrutura com a justiça exigida pelo Sul Global.
As tarefas de casa estão claras:
– definir valores, regras e acesso ao financiamento climático;
– encontrar uma linguagem que sinalize o fim dos fósseis de forma justa;
– transformar a escuta dos povos indígenas em texto vinculante; e
– garantir NDCs que reflitam a urgência da ciência, não a conveniência política.
Belém será o teste final para saber se a “implementação” deixará de ser um jargão vazio e se tornará o início de uma verdadeira transformação. E, pela primeira vez na história das COPs, esse teste será aplicado no coração da Amazônia, diante dos verdadeiros guardiões do planeta. Se o mundo falhar desta vez, não será por falta de soluções — será por escolher, mais uma vez, não ouvir quem as tem.