
“Gostaria de ser uruguaia, mas não quero morrer”, disse a brasileira Maria Teresa, 79 anos, ao saber que o país vizinho aprovou uma lei sobre o fim da vida através da eutanásia em determinadas situações. Ela cansou de sofrer dos mais variados tipos de dores. Tem fibriologia, doença crônica que causa dor generalizada em todo o corpo, principalmente músculos e tendões, além de fadiga, distúrbios do sono, ansiedade, alterações de memória e concentração. Maria Teresa se queixa também de dores na coluna, nos joelhos, e ainda sofre de enxaquecas. “É tanta dor que, às vezes, não tenho vontade de fazer nada, quero só dormir, ficar parada, sem fazer absolutamente nada”, garante.
Ela ficou sabendo que no Uruguai agora é possível fazer eutanásia, com a aprovação do Senado por 20 votos em um Parlamento de 31 presentes. Foram anos de debates, idas e vindas, mas no dia 15, com amplo apoio da população (pesquisas mostraram 62% de aprovação) e uma oposição parcial da Igreja Católica. O cardeal Daniel Sturla Berhouet, arcebispo de Montevidéu, não gostou. A Igreja Católica do Uruguai, que acompanhou todo o debate parlamentar, manifestou-se contra a aprovação e pediu que “se defenda o dom da vida e se recorde que toda pessoa merece ser cuidada, acompanhada e sustentada até o final”.
Em nota, a Arquidiocese de Montevidéu reforçou que “a vida sempre vale, ainda que precise de outros para se sustentar”. “Minha prioridade é a vida sempre, não discuto isso”, disse isso laconicamente. No entanto, padres aprovaram a ideia quando nada mais é possível fazer para que a pessoa tenha uma vida digna.
O Conselho de Representatividade Evangélica do Uruguai (Creu), membro da AEL (Aliança Evangélica Latina), manifestou publicamente sua posição contrária à legalização da eutanásia no país. O pastor Louder Garabedian, presidente do Creu, se pronunciou dizendo que a Aliança Evangélica do Uruguai considera o projeto de lei “moralmente errado”. Garabedian disse que a organização visitou o presidente do país para dizer “não à eutanásia”.
Com a aprovação da lei, Maria Teresa gostaria de morar no Uruguai e de saber de como se sentiria e se estaria realmente disposta a enfrentar esta decisão. “Não sou, então não sei o que faria, mas seria uma opção para acabar com as dores. Mas não sei se quero ir embora, mesmo com todas estas dores.”

Presidência
O presidente uruguaio Yamandú Orsi, da Frente Ampla, aprova a lei. Ele disse que vai esperar a regulamentação da lei para promulgá-la. O projeto ficou conhecido no país como “lei da Morte Digna”. Para ele, é uma evolução para o país, assim como aborto, drogas como a maconha, já foram aprovados. “Tudo com responsabilidade”, disse. “Assim nos tornamos um país mais avançado e distante de certas amarras que impedem o livre exercício da vontade de cada cidadão. Enfim, da democracia plena”, afirmou.
No Uruguai, é preciso ser natural do país para realizar a eutanásia, ter determinação própria e o aval de médicos para a antecipação da morte dos pacientes. A morte é induzida após o consentimento da pessoa que deseja morrer. Em geral, ocorre com o auxílio de um ou mais médicos e por meio de injeção letal e indolor. Para que o processo seja realizado, há condições específicas, como existência de doença incurável, sofrimento exacerbado e altos índices de dores, mediante comprovação. A legislação uruguaia prevê algumas regras: ser maior de idade, estar em plena saúde mental, e em fase terminal de doença incurável ou que cause sofrimento insuportável, com grave deterioração da qualidade de vida.
Em agosto, a Câmara Baixa, ou dos Representantes de 99 parlamentares, deu sinal verde à legislação e o Senado, agora, a aprovou. Chamada de “Morte Digna” e promovida pela Frente Ampla – a esquerda governante –, a lei coloca o Uruguai no seleto grupo de países que permitem a morte medicamente assistida, incluindo Canadá, Países Baixos, Nova Zelândia e Espanha. Na América Latina, a Colômbia descriminalizou a eutanásia em 1997 e o Equador aderiu ao movimento em 2024.
Após duas décadas sofrendo de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Beatriz Gelós ficou feliz com a lei. “Fiquei em uma paz incrível. É uma lei compassiva, muito humana, bem escrita”, disse à AFP. Agora, ela vai decidir com calma e certamente realizará o procedimento.
Apoio
O projeto contou com o apoio integral da bancada do partido de esquerda Frente Ampla, de dois senadores do Partido Colorado e da senadora do Partido Nacional Graciela Bianchi. A maioria dos senadores do Partido Nacional e parte dos senadores do Partido Colorado votaram contra a proposta, citando falta de “garantias jurídicas e clínicas”.
O senador de oposição do Partido Nacional Martín Lema classificou o projeto como “péssimo”. Lema advertiu que o texto poderia abrir brechas para interpretações amplas sobre doenças crônicas, citando que “a diabetes é uma doença irreversível” e que a lei poderia ser aplicada “a partir de um sofrimento subjetivo”.
“Este projeto não me representa. Recuso-me a dar um passo nessa direção. Minha posição pessoal é enfaticamente contrária. Não estou disposto a abrir mão desse valor que é a defesa da vida”, disse Lema. Ele também demonstrou indignação com o nome da lei: “Realmente me indigna que tenham chamado de ‘Morte Digna’. Se a morte traz dignidade, quer dizer que a pessoa que está lutando pela vida está em uma situação indigna? Desde quando a morte é a porta de entrada para a dignidade?”, bradou.
Lema acrescentou que a lei distorce o conceito de morte natural: “Deixa de ser morte natural quando é preciso de uma lei para precipitar o fim da vida”, citou. O senador criticou também a postura do governo de esquerda que comanda atualmente o Uruguai, liderado pelo presidente Yamandú Orsi, na discussão do projeto.
“Continuo sonhando com uma sociedade que acompanhe, que cuide e que não deixe ninguém sozinho, sobretudo nas situações mais difíceis”, disse Lema.
Segundo o jornal El País, o texto aprovado garante a médicos e enfermeiros o direito à objeção de consciência, permitindo que se recusem a participar do procedimento. O governo, porém, deve assegurar que outro profissional execute a eutanásia quando houver recusa.
A nova lei ainda prevê que o paciente possa desistir do pedido a qualquer momento. Caso o processo seja concluído, o médico deve comunicar o Ministério da Saúde, que verificará se o procedimento seguiu as normas legais. O atestado de óbito deverá indicar a eutanásia como “causa final da morte”.
Professor gaúcho
“A morte, essa ausência racial que é paradoxalmente uma presença constante em nossas vidas, revela-nos o limite da vontade, o ponto em que o sofrimento deixa de ser instrumento de vida para se tornar fardo intolerável”, disse o professor Alexandre H. Reis da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). “Defender a dignidade da morte, que me parece ser tão mal visto no Brasil, não representa uma exaltação da dissolução, mas, ao contrário, o reconhecimento de que a autonomia do indivíduo, a compaixão e a responsabilidade institucional devem articular-se para minorar o inelutável sofrimento, quando não há remédio razoável. Repito: quando não há remédio razoável e quando há uma decisão do titular da vida.”
Reis diz que na questão ética-política, duas verdades se impõem. Primeiro: a questão da eutanásia ou do suicídio assistido não é apenas médica, ela é política no sentido mais rigoroso. “Cabe ao Estado legislar, proteger, instituir salvaguardas, criar processos deliberativos transparentes, exatamente aquilo que o projeto uruguaio buscou implementar e agora tornou lei”. Segundo: legalizar bem não diminui cuidados paliativos; ao contrário, essa legalização, quando acompanhada de normas claras, estimula investimento público e moral social para que os cuidados paliativos existam de fato, de maneira equitativa. “As críticas existentes, por exemplo, de médicos especialistas, destacam a necessidade de supervisão, de acesso universal aos paliativos, de controle dos procedimentos; e o texto aprovado contempla várias dessas previsões”.
O professor da UFPel reforça: Por que, então, o Uruguai serve de modelo para o Brasil? Porque o Uruguai demonstra que não é necessário evitar o sofrimento através da negação do diálogo. Seu processo legislativo revela que o Estado laico pode respeitar convicções religiosas, ao mesmo tempo em que protege a autonomia individual; pode, ademais, garantir que profissionais de saúde tenham reserva moral (objeção de consciência), sem abdicar do dever de oferecer alternativa legal e segura. O texto aprovado inclui essas salvaguardas”.
Reis reafirma que legislar sobre a morte com dignidade não é promover a morte, mas proteger o direito último de decidir quando o sofrimento tornouse desumano, e responsabilizar o Estado e a sociedade por criar condições para que essa decisão seja informada, livre, segura. “O Uruguai deu um passo decisivo: tornou-se o primeiro país da América Latina (em outro artigo falarei das diferenças com a Colômbia) a aprovar por lei a eutanásia em determinadas condições, mostrando que até no limite extremo, o da vida atingindo sua barreira, é possível instituir leis laicas, reguladas, humanas, escrutinadas. Que o Brasil olhe com coragem essa lei.”
A aprovação ocorreu após um debate de mais de 10 horas no Senado, em Montevidéu. Durante a votação, algumas pessoas presentes nas galerias protestaram, gritando “assassinos” quando o resultado foi anunciado. Apesar disso, a discussão entre os parlamentares se manteve, em geral, respeitosa.
Originalmente publicado pelo Brasil de Fato