Rio de sangue. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 30 de outubro de 2025 às 22:55
Corpos enfileirados em rua do Rio de Janeiro após operação policial mais letal da história da cidade. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Por Aldo Fornazieri

Tudo o que o governo e as forças de segurança do Rio de Janeiro disserem sobre a chacina dos Complexos do Alemão e da Penha deve ser considerado suspeito. Nenhuma operação policial planejada com critérios técnicos produz um espetáculo de horror como o visto nos últimos dias no estado governado pelo bolsonarista Cláudio Castro, com 121 mortos e corpos empilhados nas ruas e praças.

O que o governador produziu de forma planejada foi um Carandiru a céu aberto, uma mini-Gaza em territórios pobres da periferia. Um rio de sangue desceu dos morros e ensanguentou a hipocrisia de um sistema político e social que apodreceu moralmente. O sangue respingou nas salas das casas e apartamentos da classe média alta, das elites políticas e econômicas, dos prédios do sistema financeiro, dos palácios do poder e dos gabinetes dos políticos. Esse sistema político e social alimenta o crime, ganha dinheiro com ele e exige que os criminosos dos baixos escalões, filhos de famílias pobres, sejam exterminados de forma impiedosa e cruel para encobrir, com uma cortina de fumaça, o sistema criminoso que os leva para os caminhos da criminalidade.

No Rio, as comunidades periféricas são oprimidas pela violência das organizações criminosas e pela violência do poder público. São escorchadas por bandidos que vivem nas comunidades e espoliadas por um sistema político corrupto e incompetente, que pratica a rapina fiscal para alimentar os canais da corrupção e dos privilégios e para drenar recursos aos poderosos. As comunidades pobres do Rio estão entre o fogo cruzado de organizações de bandidos e de um Estado bandido.

PMs durante operação no Rio. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A chacina de Cláudio Castro e seus operadores foi um ato politicamente orientado para produzir efeitos eleitorais. Ocorreu quando o presidente Lula colhia os frutos de uma viagem bem-sucedida, quando ele desbancou o bolsonarismo como interlocutor do presidente e do governo Trump e quando as pesquisas evidenciavam o desastre político operado pela família Bolsonaro com o tarifaço — desastre acompanhado pela punição dos golpistas, pelo fracasso do projeto da anistia e pela derrota da PEC da bandidagem.

A chacina foi planejada às vésperas da COP 30, que vai colocar o Brasil e o governo Lula no cume das atenções mundiais. A chacina, que ultrapassa até mesmo os mais sangrentos atos singulares de guerra, repercutiu no mundo todo, provocando reações negativas de espanto e horror.

Além de buscar ensanguentar o momento positivo do governo Lula, a chacina tem como objetivo condicionar as campanhas eleitorais de 2026 e colocar na ordem do dia a pauta da violência como única saída para os graves problemas da segurança pública e da expansão do poder do crime organizado. Essa é a bandeira que sobrou para a extrema-direita bolsonarista. Não por acaso, no dia seguinte ao horror e à repugnância que Castro impôs ao Rio de Janeiro, ele se reuniu com os governadores de direita, visando aplainar as articulações para extrair dividendos políticos e eleitorais sobre o cadáver de bandidos, de gente inocente e de policiais.

O governo do Rio e as forças de segurança precisam responder a várias dúvidas. Na denúncia do Ministério Público que deu origem à megaoperação, constava a denúncia de 69 integrantes do Comando Vermelho. Como essas buscas foram realizadas? O que dizem os cruzamentos com os nomes dos denunciados e os nomes dos mortos? Por que a operação produziu 117 mortos, excetuando os quatro policiais?

O governo e as forças de segurança precisam entregar, para as investigações, as câmeras dos policiais que participaram das operações. Precisam dizer por que conduziram integrantes do grupo para a mata e os mataram, em vez de cercá-los e rendê-los. Não havia armas ao lado dos corpos. Se não estavam armados, foram simplesmente executados sob as árvores? Mas se as armas foram recolhidas pela polícia, por que recolheram as armas e não os corpos? Ou por que não preservaram a área do massacre para que a perícia pudesse fazer o seu trabalho?

Se as forças de segurança sabiam onde moravam os líderes do Comando Vermelho, por que não organizaram operações especiais para prendê-los, em vez de planejar uma chacina? A operação permitiu que os chefes fugissem enquanto se massacrava o baixo escalão do crime — a mão de obra comercial e criminal.

O que causa espanto é que Cláudio Castro foi poupado, em termos gerais, por políticos, líderes civis e religiosos. As organizações institucionais de direitos humanos foram lerdas na reação. A rigor, ONGs e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro passaram várias horas sozinhas na linha de frente da exigência de explicações. Muitos parlamentares do campo progressista emitiram manifestações insípidas, e outros ficaram calados.

As entidades da sociedade civil, as organizações de direitos humanos e as lideranças engajadas na exigência de explicações não devem permitir que os corpos sejam enterrados sem autópsias independentes. Essas entidades, além de prestar assistência às famílias, devem entrevistar os familiares dos mortos para produzir um relatório que ofereça à opinião pública uma versão independente e fidedigna da violência desmedida.

Cláudio Castro, um notório incompetente, que está no poder desde 2019 e permitiu que o Rio fosse transformado em paraíso do CV, está sendo erigido a marechal da segurança pública. Quer ser o Bukele da América do Sul, alinhado à política trumpista de “guerra ao narco-terrorismo”, fusão das estratégias de “guerra às drogas” de Nixon e da “guerra ao terror” de George W. Bush.

Com a criação do “Consórcio da Paz”, que é um Consórcio da Morte, os governadores bolsonaristas vão empurrando o governo Lula para a defensiva no tema da segurança pública, atribuindo-lhe a responsabilidade pela expansão do crime organizado. A segurança pública aparece como preocupação de destaque em todas as pesquisas de opinião pública.

A expansão do crime organizado, projetando poder financeiro e poder sobre populações e territórios, é um problema gravíssimo que precisa ser enfrentado de forma sistemática e contínua. Equivocadamente, o governo federal, em sua apatia, quer resolvê-lo com leis e emendas constitucionais. Que se melhorem as leis, mas que não se fique na passividade. Existem elementos legais para que o governo aja, articulando medidas conjuntas da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Receita Federal e do COAF. É preciso atacar os comandos e a sustentação financeira das organizações criminosas e controlar as fronteiras, os portos e os aeroportos.

Os governistas e as esquerdas não podem, mais uma vez, passar para a defensiva diante da instrumentalização política e eleitoral da chacina do Rio. Mas a ofensiva só se sustentará se o governo federal agir com eficiência, mostrando que o uso da inteligência e de estratégias adequadas produz resultados mais eficazes do que o horripilante espetáculo de corpos empilhados nas praças e ruas.