
Por Leonardo Sakamoto, publicado no UOL
Há dias em que o Brasil parece um lugar treinado para o adjetivo fácil e o julgamento rápido. Dias em que a brutalidade vira manchete antes mesmo de a dor poder respirar. E, no entanto, no velório de Paulo Frateschi, histórico militante contra a ditadura, fundador do PT em São Paulo e ex-deputado estadual, o país testemunhou uma cena necessária: em meio à tragédia, uma filha escolheu oferecer humanidade.
Yara Frateschi se levantou diante das câmeras e do cansaço moral do país para defender o irmão de 34 anos que, segundo a polícia, matou o próprio pai, a facadas, durante um surto psicótico. “Ele não é um monstro”, disse. Em tempos de tribunais instantâneos nas redes, a frase soou como heresia para uns, mas foi gesto de coragem. Mesmo que a situação lhe garantisse o silêncio, ela preferiu o risco de estender uma ponte, não para justificar o horror, mas para impedir que uma enfermidade mental virasse sentença moral.
Enquanto o corpo do pai era velado na Assembleia Legislativa de São Paulo, entre lideranças petistas e movimentos sociais, uma mensagem de Lula foi lida, lembrando a importância da luta de Paulo — preso e torturado pela ditadura. A viúva, em uma cadeira de roda e com o braço ferido no episódio que matou o marido, estava presente, símbolo de uma dor sem nome, que sangra dentro da família antes de se espalhar por manchetes. Mas Yara insistiu: o irmão tinha um “carinho imensurável pelo pai”, os dois eram muito próximos e lá havia sim muito amor.
Num país que normalizou a desumanização (dos mortos pela violência policial, dos cancelados pelas redes sociais, dos que são tratados como lixo por não ter nada), a fala da filha soou quase dissonante. Não pediu vingança, não entregou o irmão ao altar da opinião pública para purgar um luto que é só dela. Pediu compreensão. E, de alguma forma, solicitou que a tragédia não apagasse uma biografia de afeto.
“O Francisco Frateschi é um menino maravilhoso. O Chico nunca levantou a voz para uma pessoa, ele nunca bateu em uma pessoa. Por onde o Chico passou, o Chico levou alegria, o Chico levou amor”, disse.
Ser cordial até na morte (e aqui, cordial no sentido que o pai de outro Chico, o Buarque de Holanda, desvendou, mistura de vísceras, lágrimas e ética íntima), é um ato político. Yara ofereceu uma lição amarga: mesmo quando a vida estilhaça numa cena que nenhum roteiro toleraria, a dignidade pode ser escolha. Em um Brasil que aprendeu a gritar antes de ouvir, ela lembrou que às vezes é preciso falar para que a humanidade, tão rarefeita, ainda tenha onde se apoiar.