A derrota devastadora de Trump e a emergência de uma nova esquerda no coração do império

Atualizado em 7 de novembro de 2025 às 17:21
Zohran Mamdani. Foto: Divulgação

Às vésperas da eleição de 4 de novembro de 2025, Donald Trump e Elon Musk tentaram movimentos desesperados para impedir o triunfo de Zohran Mamdani em Nova York.

Os dois homens mais poderosos do planeta e principais lideranças da extrema-direita entenderam que a eleição de um candidato autodeclarado socialista, muçulmano e defensor da Palestina representaria, para eles, um grande revés ideológico.

Pelo menos 26 bilionários mobilizaram mais de 40 milhões de dólares em comitês de campanha para tentar derrotar Mamdani. Michael Bloomberg sozinho despejou 8,3 milhões. Joe Gebbia, cofundador da Airbnb, doou 2 milhões. A família Lauder contribuiu com mais de 2 milhões. Bill Ackman gastou 750 mil. Alice Walton, a mulher mais rica do mundo, também abriu o cofre.

Trump endossou Andrew Cuomo e sacrificou o próprio candidato republicano para forçar voto útil, em uma aliança tática contra Mamdani. Musk seguiu a mesma estratégia e mobilizou sua rede social com centenas de milhões de seguidores para concentrar o voto conservador em Cuomo, pertencente a uma tradicional dinastia do Partido Democrata.

Mamdani conquistou 1.036.051 votos (50,4%). Cuomo ficou com 854.995 votos (41,6%). Aos 34 anos, tornou-se o primeiro prefeito ao mesmo tempo muçulmano e socialista da história dos Estados Unidos.

O resultado foi impulsionado pela nova geração. Entre os eleitores de 18 a 29 anos, Mamdani teve 78% dos votos, margem de 61 pontos percentuais. Já na faixa mais ampla de 18 a 44 anos, teve 69%, margem de 44 pontos. É uma vitória impressionante.

A reação de Elon Musk

Dias após o fracasso, Elon Musk publicou uma reflexão sinistra. “A Civilização Ocidental está condenada, a menos que a fraqueza central da empatia suicida seja reconhecida e ações difíceis, mas necessárias para a sobrevivência, sejam tomadas.”

A declaração expõe a ideologia sombria por trás do magnata. Se você tem centenas de bilhões de dólares, a solidariedade não importa. A compaixão gera a necessidade de cobrar impostos sobre grandes fortunas, sustentar pessoas doentes, pagar aposentadorias, financiar hospitais, escolas e universidades.

A empatia, porém, é uma das maiores virtudes humanas. Ela é um pilar fundamental das nossas principais tradições éticas, religiosas e humanistas. Confúcio ensinou há 2.500 anos: “O que você não gostaria que fizessem a você, não faça aos outros.”

Após os debates gerados com a publicação de “O Gene Egoísta”, de Richard Dawkins, biólogos, filósofos e cientistas concluíram não apenas que a cooperação é essencial para a evolução das espécies, como está encrustada no próprio código genético de todos os seres vivos. Musk nega a própria ciência ao desprezar a importância da solidariedade e da empatia para a própria sobrevivência da humanidade.

O falso mito da civilização ocidental

Alex Borges, articulista do portal Metrópoles, publicou o artigo “A cidade do 11 de setembro entrega o poder a um inimigo da civilização ocidental”, que sintetiza como a direita trumpista no Brasil e no mundo reagiu à vitória de Mamdani.

Mas que “civilização ocidental” é essa de que tanto fala a extrema direita? A civilização que gerou o nazismo? O colonialismo que, segundo Hannah Arendt, foi a antessala onde se forjou o fascismo? A escravidão africana? Ou o Ocidente é a luta anticolonial, o abolicionismo, a Revolução Francesa, o Estado Democrático de Direito e o socialismo?

Essa divisão simplória entre Ocidente versus resto do mundo ignora que os clássicos da antiguidade foram preservados pelos centros de cultura do Oriente Médio. Definir o Ocidente como anti-islâmico é absurdo, pois a religião islâmica tem origem na mesma região onde nasceram o judaísmo e o cristianismo. Muitos valores são comuns, inclusive teológicos.

Pessoas em uma cidade do Oriente Médio. Foto: Divulgação

É bom lembrar que a filosofia grega nasceu sob o influxo dos filósofos nascidos e criados do outro lado do mar Egeu, ou seja, numa região onde hoje é a Turquia, tecnicamente situada no Oriente. Os pioneiros da cultura escrita grega, como Heráclito de Éfeso, e até mesmo Homero, vieram da Ásia Menor.

Da mesma forma, as primeiras universidades e centros de saber de alto nível do mundo floresceram no Oriente — como as universidades de Takshashila e Nalanda, na Índia, séculos antes das europeias. A Universidade de Al-Qarawiyyin, em Marrocos, fundada em 859 d.C. por uma mulher, Fatima al-Fihri, é reconhecida pela UNESCO como a mais antiga instituição de ensino superior em operação contínua no mundo. A matemática que permitiu a Newton revolucionar a física veio por meio dos árabes, que inventaram a álgebra e nos presentearam com o sistema de numeração indo-arábico, a ferramenta mais básica da ciência moderna.

O presidente Lula, no discurso de abertura da 80ª Assembleia Geral da ONU, em 23 de setembro de 2025, foi direto ao ponto. Falando sobre o genocídio em Gaza, ele disse: “Também foram soterrados nos escombros de Gaza o mito da superioridade ética do Ocidente.” Não existe, portanto, nenhuma “superioridade” nessa suposta civilização ocidental que deveríamos preservar. E a única postura decente que devemos adotar é a de aprender humildemente com todas as culturas deste planeta.

A derrota do trumpismo

O triunfo de Mamdani consolida uma mudança ideológica que vem sendo gestada há anos nos Estados Unidos, desde que Bernie Sanders chega muito perto de vencer as primárias do partido democrata em 2016. A mídia corporativa, nos EUA e no Brasil, tem dificuldade para aceitar o fato de que o conceito de socialismo vem ganhando prestígio entre os jovens americanos. Segundo pesquisas do Gallup e do Pew Research Center, 52% dos americanos entre 18 e 34 anos têm uma visão positiva do socialismo, enquanto apenas 49% veem o capitalismo de forma positiva. Uma pesquisa de 2024 da Vox/Data for Progress constatou que 61% dos eleitores com menos de 30 anos têm opinião favorável do socialismo.

Mamdani conquistou apoio em comunidades imigrantes que vinham se inclinando para Trump, especialmente entre latinos. Caçados como animais pelo ICE — o departamento de imigração de Donald Trump, que age com base na aparência e na raça e tem aterrorizado comunidades inteiras —, os eleitores latinos aprenderam na pele a importância de prestar mais atenção em quem eles elegem.

Mas não foi só em Nova York. Em Nova Jersey, a democrata Mikie Sherrill venceu a eleição para governadora com ampla vantagem de 13 pontos percentuais. Na Virgínia, Abigail Spanberger também conquistou o governo estadual com margem ainda maior, de 15 pontos — a maior diferença democrata em uma eleição estadual desde 2018. Na Pensilvânia, candidatos democratas para juiz estadual obtiveram vitórias esmagadoras, com mais de 70% dos votos.

A mudança no voto latino foi particularmente impressionante. Milhares de eleitores que haviam escolhido Trump em 2024 voltaram para o Partido Democrata. Em Nova Jersey, Sherrill conquistou quase dois terços do voto latino. O caso mais emblemático foi o Condado de Passaic, onde metade da população tem origem latino-americana: Trump havia vencido ali em 2024, mas Sherrill inverteu completamente o resultado em 2025, transformando uma derrota de 3 pontos em uma vitória de 15 pontos — uma reviravolta de 18 pontos percentuais em apenas um ano.

A renovação da esquerda americana também se manifesta nas ruas. Em 18 de outubro de 2025, os protestos “No Kings” reuniram quase 7 milhões de americanos em aproximadamente 2.700 cidades, um dos maiores protestos de um único dia na história americana.

O impacto global

O terremoto político em Nova York ecoou além das fronteiras americanas. Em toda a América Latina, a juventude que acompanha a política americana será profundamente impactada. Trata-se de um setor influente da sociedade, sobretudo nos meios liberais, e vinha sendo um dos principais ativos da nova direita. Esse segmento vai questionar: que modelo seguir? A Argentina em franca declínio econômico ou a cidade mais rica e diversa do mundo?

Nova York não é “apenas” uma metrópole americana. Ela é símbolo dos Estados Unidos e tem impacto fortíssimo sobre o imaginário do mundo inteiro. A esquerda de Mamdani derrotou não apenas a direita republicana, mas também a ala conservadora do próprio Partido Democrata. O triunfo do socialista nova-iorquino consolida, além disso, a ascensão da mídia independente americana e aponta caminhos para uma nova esquerda no coração do império.

Publicado no Cafezinho