Queda da cúpula da BBC, na pior crise de sua história, é golpe impulsionado por Trump

Atualizado em 10 de novembro de 2025 às 19:30
Trump: golpe na BBC

A crise que derrubou simultaneamente a diretora de jornalismo da BBC, Deborah Turness, e o diretor-geral Tim Davie, é a mais profunda em seus 102 anos de existência. O colapso começou de forma aparentemente banal: uma reunião rotineira do conselho, semanas atrás, que deveria discutir assuntos administrativos.

Em vez disso, tornou-se uma sessão de ataque direto contra Turness, marcada pela leitura de um documento de 8 mil palavras repleto de acusações de “viés liberal” no noticiário da BBC.

O autor do texto era Michael Prescott, ex-conselheiro das diretrizes editoriais da emissora, ex-editor político do conservador Sunday Times e já conhecido por suas críticas à BBC. Ele enviou uma carta ao presidente do conselho, Samir Shah, alegando que reportagens sobre Donald Trump, Gaza e direitos trans eram sistematicamente enviesadas.

O centro da acusação era um erro do programa Panorama, que editou trechos de um discurso de Trump sem informar o público, dando a entender que ele incitara a invasão do Capitólio — algo que, afinal, fez de fato, talvez não tão explicitamente. Não houve reclamações formais do público na época, o episódio caiu no esquecimento, mas foi recuperado e amplificado por veículos de direita.

A carta explodiu dentro da emissora porque caiu nas mãos de um conselho já dividido politicamente. Quem liderou o ataque a Turness durante a reunião foi Robbie Gibb, ex-chefe de comunicação da antiga premiê Theresa May e um dos fundadores do canal GB News.

Indicado ao conselho ainda no governo Boris Johnson, Gibb é acusado há anos por funcionários da BBC de pressionar internamente contra reportagens que considera “woke” ou inclinadas à esquerda. Para um editor veterano ouvido pelo Guardian, “o que aconteceu foi um golpe interno, não uma discussão editorial”.

Nos bastidores, a cena descrita é de Turness sendo pressionada por mais de uma hora, quase sem apoio, obrigada a responder ponto a ponto às acusações de Prescott. A composição atual do conselho, dominada por membros sem histórico jornalístico, abriu caminho para que Gibb tivesse “oxigênio ilimitado na sala”, como descreveu um funcionário.

Um conselheiro que costuma defender a independência jornalística estava ausente. Outros admitiram não se sentir tecnicamente aptos a intervir.

A situação piorou dias depois, quando o Telegraph publicou a carta e dedicou uma semana de manchetes às acusações, transformando um erro editorial isolado em suposta evidência de um viés sistêmico. Enquanto a crise tomava forma, a BBC permaneceu em silêncio.

Turness e outros executivos defendiam responder rapidamente, inclusive com um pedido formal de desculpas pelo erro no Panorama. Shah teria barrado a iniciativa até que o conselho produzisse uma posição “coletiva”, criando um vácuo que adversários políticos aproveitaram intensamente.

Foi nesse ambiente que Trump reagiu. Agora novamente presidente, ele acusou a BBC de ser uma “máquina de propaganda 100% fake news” e ameaçou entrar com um processo de US$ 1 bilhão pela edição do discurso. Aliados do governo conservador britânico também se manifestaram. Deputados pressionaram o conselho, e a presidente da Comissão de Cultura e Mídia do Parlamento, Caroline Dinenage, cobrou explicações formais.

Dentro da emissora, o clima se deteriorou. Editores relataram “choque”, “tristeza profunda” e a sensação de que Turness havia sido abandonada. Após uma segunda reunião do conselho, ainda mais tensa, ela concluiu que não tinha mais apoio político interno para permanecer no cargo.

Tim Davie, já desgastado por acusações envolvendo a cobertura de Gaza, pressões sobre apresentadores e conflitos sobre redes sociais, avaliou que sua própria posição havia sido comprometida. Ambos decidiram renunciar.

O episódio expôs um conflito maior, que vem se arrastando desde o governo Boris Johnson: a tentativa de setores conservadores de deslocar o centro editorial da BBC para a extrema direita.

Para funcionários veteranos, há uma linha clara entre a nomeação de Robbie Gibb para o conselho, a indicação de Prescott como conselheiro editorial e a forma como a crise foi conduzida. Quem acha que isso é sobre um vídeo de 12 segundos está por fora da verdadeira história.

A renúncia dupla deixou a BBC sem liderança às vésperas das negociações mais sensíveis da década: o debate sobre financiamento público e o futuro da licença obrigatória.

Também expôs divisões internas sobre como responder à hostilidade crescente de governos, partidos e grupos de pressão. “A pergunta agora”, disse um produtor veterano ao Guardian, “é se ainda é possível dirigir a BBC com independência em um ambiente tão politizado.”

Tim Davie e Deborah Turness, ex-BBC
Kiko Nogueira
Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.