
As declarações de Friedrich Merz sobre Belém, dizendo que ele e sua comitiva ficaram “contentes” por deixar a cidade, caíram como um retrato de preconceito explícito num momento em que a diplomacia climática exige justamente o contrário: respeito, cooperação e sensibilidade.
O chanceler desprezou o país anfitrião da COP30 e reforçou estereótipos usados há décadas para desqualificar países do Sul Global. “Perguntei a alguns jornalistas que estiveram comigo no Brasil: ‘Quem de vocês gostaria de ficar aqui?’ Ninguém levantou a mão”, afirmou.
Vergonhosa a fala de Friedrich Merz, chanceler alemão sobre Belém.
Não tem como levar a sério um líder que fala em proteção climática, mas demonstra incômodo ao pisar na maior floresta do planeta. Belém não é desconforto; desconforto é a arrogância europeia fantasiada de… pic.twitter.com/15AIT9rLc5
— Duda Salabert (@DudaSalabert) November 17, 2025
O episódio soma-se a uma sequência de falas recentes do próprio Merz que vêm chocando seu país. Há poucas semanas, o chanceler afirmou que alemães “têm medo de circular em espaços públicos” por causa de imigrantes.
Depois, pressionado por um jornalista, reagiu com deboche estúpido: sugeriu que ele “perguntasse às suas filhas o que eu quis dizer”, insinuando que crimes cometidos por estrangeiros seriam uma ameaça evidente a mulheres. A resposta gerou indignação imediata, especialmente entre jovens alemãs, que lançaram o manifesto “Nós somos as filhas”, já com quase 200 mil assinaturas.
Friedrich Merz kontert Journalisten-Naivität mit einem Satz zum veränderten #Stadtbild: "Fragen Sie mal Ihre Töchter!" – und entlarvt damit die ganze Medien-Heuchelei! Während Redakteure aus sicheren Vororten über "Rassismus" schwadronieren, wissen ihre eigenen Töchter genau,… pic.twitter.com/L3JgEXKNTe
— Anna Nina (@annaninii) October 20, 2025
As críticas se multiplicaram. Ambientalistas, artistas e acadêmicos apontam que Merz usa mulheres como pretexto retórico para reforçar discursos anti-imigração. Organizações feministas ressaltam que violência de gênero não tem nacionalidade e que o chanceler instrumentaliza um medo real para promover políticas de exclusão.
Em paralelo, manifestações reuniram milhares em Berlim e outras cidades, denunciando o que chamaram de “normalização do discurso xenófobo no governo federal”. Mesmo membros do SPD, partido que compõe a coalizão de governo, afirmaram que Merz “divide a sociedade” e cria uma falsa oposição entre “alemães legítimos” e cidadãos com origem migratória.
Esses movimentos internos já colocavam o chanceler sob forte pressão quando ele desembarcou na COP30. Ao transformar Belém em alvo de xenofobia, ampliou ainda mais a percepção de que a Alemanha se distancia da liderança climática que exerceu no passado. Para países amazônicos, a fala reforça uma hierarquia implícita que sempre dificultou negociações sobre financiamento e responsabilidades históricas.
A reação brasileira foi imediata nos bastidores: diplomatas classificaram a postura como “desrespeitosa e contraproducente”. Para organizações indígenas presentes na conferência, a frase do chanceler explicita o abismo cultural que ainda separa países ricos das comunidades diretamente afetadas pelo colapso climático.
O contraste entre discurso e prática também apareceu na agenda climática. Merz tenta se vender como defensor da transição ecológica, mas sua própria ministra da Economia segue priorizando infraestrutura de gás. O chanceler promete cumprir metas, mas evita assumir compromissos proporcionais à responsabilidade histórica alemã — e ainda usa a crise migratória para avançar pautas conservadoras.
O episódio amplia a sensação de que parte da União Europeia caminha para uma postura mais hostil, nacionalista e distante dos consensos internacionais. E deixa uma pergunta incômoda no ar: se o chanceler da quarta maior economia do mundo trata assim o país que sedia a maior conferência climática da história, o que esperar das negociações sobre financiamento, justiça climática e transição energética?