
Documentos preservados no Palácio do Itamaraty no Rio foram restaurados e digitalizados, revelando novos detalhes sobre o funcionamento do tráfico de escravizados no Brasil no século 19. O acervo reúne 25.877 páginas de 164 processos julgados pela Comissão Mista Brasil Grã Bretanha, formada após acordos internacionais que permitiam a apreensão de navios suspeitos. O material está disponível ao público desde setembro no site do Itamaraty.
Produzidos entre 1815 e 1850, os documentos contam como militares ingleses interceptavam embarcações usadas no comércio ilegal. Relatos mencionam falta de comida e água, mortes a bordo e tatuagens com iniciais dos futuros compradores gravadas no corpo dos cativos. A digitalização custou cerca de 250 mil reais e integra um programa maior, financiado por 125 milhões de reais em emendas, para recuperar e disponibilizar documentos históricos.
As apreensões se intensificaram após o tratado Anglo Brasileiro de 1827, que previa o fim do tráfico em três anos. A partir de 1830, o Reino Unido passou a tratar essas operações como pirataria. O historiador Flávio Gomes explica que, por suspeitas de corrupção no tribunal do Rio, a maior parte dos julgamentos ocorreu em Serra Leoa. Os arquivos mostram que o tráfico também utilizou portos menos lembrados, como o de Macaé.
Um dos casos mais detalhados é o da embarcação Duquesa de Bragança, apreendida em 1834 com 277 africanos embarcados em Angola. Quarenta e seis estavam doentes e havia indícios de fome. Outro processo narra a captura do Panquete de Bangela em 1840, com 219 escravizados, alguns deles marcados com letras tatuadas para identificar futuros donos. A prática ilustrava a lógica de desumanização que orientava o comércio.

Há também registros de navios que usavam rotas alternativas para tentar fugir da vigilância inglesa, como o Sociedade Feliz, apreendido após deixar Salvador rumo a Lagos e Luanda. O acervo inclui procurações e disputas legais que se estenderam por décadas, mostrando a tentativa de famílias de recuperar embarcações confiscadas pelo modelo internacional de repressão ao tráfico.
Entre os processos mais extensos está o do Africano Oriental, que saiu de Lisboa rumo ao Cais do Valongo e foi detido em 1830. Dos 376 africanos embarcados, 116 morreram antes da chegada ao Brasil. Uma parte da tripulação era composta por ex escravizados libertos. Os documentos agora digitalizados ampliam o acesso a informações essenciais sobre a história da escravidão e o impacto desse comércio na formação do país.