
Por Washington Araújo
Entre a meia-noite do dia 21 e as primeiras horas da manhã desta sexta-feira, 22 de novembro de 2025, Jair Bolsonaro deixou de ser apenas um condenado monitorado para se transformar num caso complexo de segurança pública. Às 0h08, o sistema de monitoramento registrou violação da tornozeleira eletrônica, e o alerta chegou imediatamente ao ministro Alexandre de Moraes, que horas depois determinou a prisão preventiva do ex-presidente sob argumento de “elevado risco de fuga” e “ato deliberado de sabotagem”.
O documento da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do DF (SEAPE), tornada pública por veículos de imprensa, descreve “marcas de queimadura em toda a circunferência do fecho” e “avarias compatíveis com exposição a fonte térmica de alta intensidade”.
A versão apresentada pelo próprio réu — de que teria usado um ferro de solda por “curiosidade” — abriu uma discussão que vai muito além da anedota. A tornozeleira eletrônica não é um bracelete decorativo: é ajustada firmemente ao tornozelo, possui sensores internos e material resistente a corte e calor moderado. Qualquer tentativa de violação exige força, técnica e, no caso reportado pela SEAPE, exposição prolongada a calor extremo.
É aqui que entra um dado técnico incontornável. Um ferro de solda comum, usado por profissionais de elétrica e eletrônica, costuma operar entre 300 °C e 400 °C.
Qualquer contato acidental com a pele humana nesta temperatura causa queimaduras profundas, bolhas imediatas, necrose e risco de infecção. Apenas aproximar o instrumento por segundos já impõe dano severo. O simples fato de Bolsonaro ter posicionado essa ferramenta junto ao tornozelo — área sensível, vascularizada, com menor camada de proteção — revela um risco elevado que dificilmente seria assumido por alguém sem suporte técnico ou sem plena consciência do perigo.
Some-se a isso outro detalhe nada trivial: não é comum que uma pessoa sem atividade técnica mantenha um ferro de solda em casa, muito menos em ambiente de monitoramento judicial.
A investigação da Polícia Federal deve, inevitavelmente, rastrear a origem do equipamento: nota fiscal, loja, data de aquisição, entrega, testemunhas, câmeras de segurança, quem o levou até a residência, se havia assessoria técnica presente ou consultada.
Tornozeleira de Bolsonaro tinha sinais de avaria e marcas de queimadura
📌 Um relatório da Secretaria de Administração Penitenciária do DF, revela que a tornozeleira eletrônica usada por Jair Bolsonaro apresentava “sinais claros e importantes de avaria”, com marcas de queimadura… pic.twitter.com/0nWcJRuLln
— dcmonline (@d_c_m_on_line) November 22, 2025
O instrumento não surge por geração espontânea — ele foi comprado, entregue ou disponibilizado por alguém.
E há outro componente que complica a equação: Bolsonaro enfrenta relatos recentes de soluços persistentes, engasgos e dificuldades respiratórias, incluindo episódio em que teria “ficado quase dez segundos sem respirar”, segundo o senador Flávio Bolsonaro.
Se esse quadro é real, a pergunta é inevitável: e se, ao manusear um ferro a mais de 300 °C preso a uma fonte de energia, ele tivesse uma crise súbita de soluço? As possibilidades vão de queimaduras graves a choque elétrico, queda, desorientação, colapso e até risco de morte. A interação entre instabilidade fisiológica e instrumento de alta temperatura cria um cenário de perigo intenso.
A SEAPE acrescenta um elemento que a investigação não pode ignorar: o dano térmico na tornozeleira é uniforme e circular, o que dificilmente é alcançável por uma única pessoa, em posição desconfortável, com um ferro de solda apontado para o próprio tornozelo.
Esse padrão sugere a possibilidade concreta de concurso de duas ou mais pessoas na manipulação — hipótese que amplia o escopo criminal, podendo configurar facilitação de fuga, associação criminosa ou obstrução de justiça.
No centro dessa noite estranha também aparece uma narrativa que precisa ser considerada: Bolsonaro diz ter agido por “curiosidade”, frase que soaria frágil até na boca de uma criança de seis anos — idade em que pais repetem, incansáveis, que não se aproxima o corpo de nada que queima.
Como imaginar que um adulto de 70 anos, ex-presidente da República, ex-deputado por mais de 30 anos, optaria por um ato que crianças sabem ser perigoso? Essa incongruência chama atenção não apenas jornalisticamente, mas juridicamente.
Por fim, uma hipótese mais delicada, porém plausível, deve entrar no radar: não seria esta uma tentativa calculada de construir a imagem de um homem emocionalmente abalado, psicologicamente instável, incapaz de responder por seus atos, com o objetivo futuro de pleitear que sua pena de 27 anos e três meses seja cumprida em prisão domiciliar — e não em presídio comum?
A súbita soma de sintomas físicos, crises respiratórias, impulsividade e ações irracionais pode, se articulada, formar uma narrativa conveniente para o réu.
Por isso, a Polícia Federal, ao custodiá-lo em suas instalações na Asa Sul, deve manter vigilância absoluta sobre medicamentos controlados, objetos disponíveis, visitas e registros contínuos, garantindo que nenhuma eventual autolesão possa ser atribuída a falha do Estado. Cada detalhe agora importa — e muito.
Porque, no final, mais do que um ferro de solda queimando plástico, o que se derrete nesta madrugada é a fronteira entre fato e versão. E o país tem o direito — e o dever — de saber exatamente o que aconteceu. Nenhum detalhe, o mínimo que seja, pode ser descartado.