
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
Aliados e seguidores de Bolsonaro passaram a mão na cabeça do ex-presidente após ele ter sido preso por derreter a tornozeleira eletrônica, exigindo que o Estado brasileiro não o puna por algo que ele, de própria voz, reconheceu que fez. O problema é que o Brasil está há quase 40 anos passando a mão na cabeça dele, como se inimputável fosse, permitindo que continue atacando as instituições e atropelando a lei.
Como militar, ele se safou de ser expulso por planejar ações terroristas. Em outubro de 1987, a revista Veja apontou que era um dos autores de um plano para explodir bombas em quartéis do Rio de Janeiro caso o reajuste de salários de militares ficasse abaixo do esperado. Perícia da Polícia Federal apontou que os esboços de onde as bombas seriam colocadas foram feitos por ele mesmo. Jair foi investigado e uma comissão militar formada por coronéis decidiu que deveria ser expulso do Exército, mas teve a punição revogada pelo Superior Tribunal Militar em 1988. Mais do que falta de evidências, foi uma tentativa de pôr panos quentes.
Como deputado federal, ele extrapolou sua liberdade de tribuna, atacando direitos e cometendo crimes, nunca sendo punido. Em um deles, disse em entrevista ao jornal Zero Hora que a deputada federal Maria do Rosário “era tão feia que não merecia ser estuprada”. A Primeira Turma do STF chegou a torná-lo réu, mas o tempo passou e a 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal verificou ter ocorrido a prescrição e arquivou definitivamente o processo em 2024.
Como presidente, a “capivara” é gigante. Mas o caso mais gritante é o fato de suas ações e inações terem contribuído significativamente para o Brasil ultrapassar os 710 mil mortos por covid-19, sendo o segundo país com o maior número de mortes enquanto somos apenas o sétimo em população. Preocupado com sua reeleição desde sempre, e com o impacto econômico trazido pela pandemia, empurrou as pessoas às ruas e atuou contra as medidas sanitárias, além de promover remédios ineficazes e demorar para comprar a vacina. Satirizou os doentes e fez pouco caso dos mortos. Até agora, não foi punido.
Sua sorte começou a mudar quando o Tribunal Superior Eleitoral o condenou duas vezes por abuso de poder político e econômico ao usar a estrutura do governo federal para suas necessidades eleitorais. Primeiro, por ter convocado embaixadores estrangeiros e feito uma micareta eleitoral no Palácio da Alvorada para espalhar mentiras sobre a urna eletrônica e o sistema de totalização de votos. Depois, por ter sequestrado a celebração dos 200 anos da Independência do Brasil para sua campanha. Isso o tornou inelegível, o que os seguidores viram com choque. Como assim? Jair é alcançável pela Justiça?
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Depois, a investigação da Polícia Federal culminou em seu indiciamento, a análise da Procuradoria-Geral da República levou à sua denúncia, e a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal o condenou a 27 anos e três meses por tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e dissolução violenta do Estado democrático de direito. Um plano que incluiu ataque direto à Justiça Eleitoral, tentativa de impedir os eleitores de Lula de votar, planos para envenenar o petista, explodir Alexandre de Moraes e matar Alckmin, decreto para melar as eleições, pressão sobre comandantes das Forças Armadas e até atos golpistas no 8 de janeiro de 2023. Desde então, membros do seu clã, aliados e seguidores vêm pressionando o Estado e as instituições para tentar garantir impunidade. Consideram intolerável que ele responda pelos seus atos.
Bolsonaro poderia estar agora preparando a sua candidatura à Presidência da República para concorrer novamente com Lula no ano que vem. Mas preferiu, ainda durante a campanha, cometer crimes eleitorais grotescos. Ele poderia ficar livre até a ordem para cumprimento da pena, mas preferiu, junto com seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, atacar o julgamento no STF, conspirando com os Estados Unidos contra a economia e as instituições do Brasil. Jair ainda poderia cumprir pena em prisão domiciliar, dado o seu quadro de saúde, mas destruiu sua tornozeleira eletrônica enquanto outro filho, Flávio, criava tumulto com a convocação de uma vigília, o que facilitaria a fuga.
Após o episódio em que ele tentou derreter a tornozeleira usando um ferro de solda, aliados e seguidores tentam contemporizar, chancelando sua desculpa de que estava com uma “alucinação” de que havia uma escuta dentro do aparelho, provocada pelos remédios que ele estava tomando.
Tornozeleira de Bolsonaro tinha sinais de avaria e marcas de queimadura
📌 Um relatório da Secretaria de Administração Penitenciária do DF, revela que a tornozeleira eletrônica usada por Jair Bolsonaro apresentava “sinais claros e importantes de avaria”, com marcas de queimadura… pic.twitter.com/0nWcJRuLln
— dcmonline (@d_c_m_on_line) November 22, 2025
Não cabe, contudo, o benefício da dúvida. O próprio Jair já fez um “test drive” de fuga de dois dias na Embaixada da Hungria, em fevereiro do ano passado, após ter seu passaporte apreendido. E fugiu para a Flórida dois dias antes do final do seu mandato, com receio de que viesse a ser penalizado pela articulação golpista e para criar um álibi para o 8 de janeiro. E foi descoberta, em seu celular, uma minuta de um pedido de asilo ao governo Javier Milei, na Argentina. Já deu provas de que a mentira é seu ofício.
É ele o culpado pelos seus próprios infortúnios. No máximo, os seus filhos entram na conta.
Se as instituições têm culpa de algo, foi de não ter aplicado punições contra ele quando ele rasgou a lei em benefício próprio. Torçamos para que quase 40 anos tenham sido o suficiente para aprenderem a lição e o Brasil abandone a alcunha de “paga-lanche” de Bolsonaro.
Bolsonaro permaneceu dois dias na embaixada da Hungria em Brasília, diz Jornal 'The New York Times', que teve acesso às câmeras do local. Defesa do ex-presidente afirma que Bolsonaro foi convidado e que discutiu cenário político do Brasil e da Hungria https://t.co/TGKEFPbndy #JN pic.twitter.com/celFUzReUf
— Jornal Nacional (@jornalnacional) March 26, 2024